segunda-feira, 28 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Se alguém interrompia o curso das classes, rejubilávamos. Ali, dentro da escola, passassem ou não da entrada, todos os visitantes se tornavam diferentes. As mães que delambiam na loja, mal subiam os três degraus junto à porta, tropeçavam nas palavras, a voz a apoucar, minha senhora para aqui, minha senhora para ali, atrapalhadas na razão que as trouxera. E a timidez avançava-lhes corpo fora na razão directa da proximidade à professora.  Constatavam o ar superior daquela garota bonita, cheirosa e bem vestida, de mãos brancas que pareciam saltar da roupa em exagerado impudor, unhas em pétala, tão vermelhas que mais pareciam gotas de sangue a despedir brilhos. Eram mãos inquietas, agitavam-se durante a conversa, dedos que abriam e fechavam em respiração de medusa. Perante isto, as modestas mãos das mulheres enfiavam avental abaixo e escondiam-se nos bolsos, catando migalhas de pão lá no fundo, um alfinete, um papelinho dobrado, pequenas bolas de cotão que juntavam com a unha percorrendo a costura do bolso, uma aspereza de dedos a embirrar nos fios de tecido e que arranhava a palma se acaso a tocava. E elas a avaliar num repente feminino, se eu tivesse dinheiro comprava um creme e ficava como ela, uma seda; não sou assim tão velha, quem sabe se não temos a mesma idade. E depois sacudiam devaneios, os punhos forcejavam no tecido a afundar ímpetos e, enquanto a força dos nervos esborrachava a bola de cotão entre o indicador e o polegar, tomavam coragem e diziam ao que vinham quase sem olhar a professora, como quem pede uma esmola envergonhada.
As mães sentiam-se menos diante da mestra e eram para nós mais do que elas mesmas. Cada mãe que aparecia na escola subia-nos aos píncaros. Não interessava se vestia melhor ou pior, interessava estar ali junto de nós, a ver-nos. Havia entre elas mulheres mais e menos simpáticas, mas não naquele lugar. Ali, eram supremas: eram as nossas mães. Irradiavam. O resto era penumbra.
Os pais eram caso raro. Ninguém os desejava na escola. Se um pai se deslocava à escola, de duas uma: ou havia morte de familiar chegado, ou uma grande sova nos esperava em casa. Os pais não falavam com a professora, participavam-lhe notícias sobre a saída imprevista do seu rebento. Não atendiam discurso e nem o escutavam; se era por morte, anunciavam e saíam, especavam na rua até que o filho aportasse. Mas se a visita era por mau comportamento, alguns davam-se ao desplante de entrar escola dentro e retirar a criança à bruta, a professora atrás em protestos de tic tic que são nervos de salto alto, não pode fazer isso, aqui quem manda sou eu, faço uma participação... E eles com pernas de metro, sem lhe fazer caso. Nós assistíamos à verborreia da mestra a cair no vácuo da raiva paterna e encolhíamo-nos à visão do cinto desabotoado e dobrado em U. Pronto. As duas extremidades na firmeza da mão direita. O cachopo, era certo, seguia na sua frente até casa, sob vergastada que fervia. Mas o caminho era um nada do que o esperava. O amor dos pais era assim, educava com muita dor. E revolta.
Porém, o que mais nos agastava era a visita do médico e das enfermeiras. Aqueles três de bata branca prenunciavam a tortura das vacinas. E corriam-nos a todos. Não valia chorar, estar doente, com dor de barriga, ter o pai assim ou a mãe assado. À medida que nos chamavam pelos nomes inscritos no cartão de vacinas, punham-nos em fila junto à secretária e, na nossa vez, zás, enterravam-nos sem dó uma agulha comprida e injectavam um líquido que, para nosso desconsolo, demorava tempo demais a entrar no corpo. Com medo da chacota uns dos outros, os rapazes faziam-se fortes, rangiam os dentes e quase nunca choravam. Mas a maior parte das raparigas debulhava e ia para o lugar a segurar o algodão e de olhos muito brilhantes.
De nós três, eu era a pior. Mal apercebia os batas brancas desatava um pranto silencioso e sofria por antecipação todas as etapas, desde a picada da agulha. Sabia aquele momento em que o bico se enterra na carne e sentia depois o líquido a correr vagaroso até à imobilidade do êmbolo, logo seguido do instante em que a agulha se solta do braço e nos deixa em paz. Esta ameaça invadia-me todos os sensores e tornava indistinguível a dor presente da futura.

Sem comentários:

Enviar um comentário