No
largo da igreja, as pessoas acasulavam em magotes zumbindo conversas que
surdiam em apreciações de pente fino a cada conviva que aportava. Obliterado o
ser de todos os dias, o núcleo dos convidados mantinha-se isolado da maralha e
muito composto, destacando da ralé a que pertencia em todas as horas menos
naquela e quedava-se junto ao templo, convites da noiva a um lado
e do noivo a outro, avaliando-se mutuamente para não deixar em pouco a
representação. Cada um aliviava reconhecendo para os seus botões, este lado tem pessoas
muito mais finas e bem vestidas. Exacerbados de aparência, ainda que vizinhos
naturais e vivendo em portas e ruas contíguas, estranhavam-se entre si: homens de
sapato engraxado em asfixia de gravata e apertos de casaco; mulheres contrariando
o hábito de perna ao léu, erguidas sem treino em sapatos de salto e meia de
vidro, a pilosidade acamada sob o nylon a azular-lhes as pernas, inconformismo de um pêlo ou outro a romper nos poros das meias. As mulheres que pareciam
outras, uma altura desmedida de cabelo disposto em ninho invertido, receptáculo
de ganchos e carramiços forjados em salões de cabeleireira, malitas desasadas a pender dos mesmos braços que retesavam no vime dos cestos, ou afeitos à brusquidão cega de foices e enxadas. E as crianças. Tesas de goma e brilhantina,
esmagadas por avisos de pé leve - se te sujas, meto-te em casa e levas uma pisa
que vais ver -, os pés que chinelavam ano inteiro tolhidos no aperto de
sapatos e meias, mal respiramos, nem um dedo podemos mexer. Jactantes e oblíquos, os garotos comparavam-se de viés, agitando a episódica fortuna de fios com crucifixo, pulseiras e medalhinhas e, pé ante pé, faziam-se próximos a pavonear-se na vestimenta. As mães com
sete olhos, não te esqueças do que te disse e nada de corridas que desmanchas o
cabelo; vê lá não se abra o fecho, se perdes o fio ou a pulseira avéns-te com o
teu pai.
Foi
neste entrementes que o carro do Laurentino deu uma volta lenta e parou em frente da escadaria. Soou o boato, é a noiva que vem num
carro de praça. Mas logo alguém emendou antes que o círculo apertasse e os
pescoços esticassem, nada! É só a velha Carmelita e mais a gaiata que tem lá em
casa. E eu vaidosa sem controlo, como se fora gente de importância. O
Laurentino de mão na porta, indeciso, pego-lhe ao colo D. Carmelita?. Então a madrinha piscou-me o olho, exigiu-lhe o braço a redobrar mazelas da idade e o
homem deu uma pressurosa volta ao automóvel que eu aproveitei para escorregar
do banco e descer sozinha do coche. Depois,
ouvi alguns cochichos, a velha tem roupas boas, dantes vivia bem, diz que
o marido tinha um bom emprego. E algumas depreciativas invejas, um fio de maldade
a perpassar, uma velha com os pés para cova e de chapéu, tché! Sempre a gente
vê cada coisa. E eu que estava tão contente de mim, não mereci palavra; nada
para o vestido, os laços, os sapatos a que tinha dado brilho com casca de banana. Lembrei-me de Lídia. Já se teria feito
notar, deitava a língua de fora a uma data de gente, dava umas caneladas aos
garotos mais impertinentes e seguia em frente de nariz no ar, sobranceira.
Lídia era compacta, impunha-se em bloco e não era fácil esquecê-la. Umas vezes
sem intenção e outras por raiva propositada, a memória, pelo menos a minha,
ressaltava-lhe a densidade. Impunha-a, solene. Mas eu não era ela. Tudo em mim
negava brigas e provocações. O meu sub reptício era o desejo de agradar
a algumas poucas pessoas, a vontade de ter no meu canto quem que me protegesse
e gostasse. O resto podia fluir, passar, ruir, não me pertencia. Nesse tempo,
como talvez em todo o meu tempo, o nicho
sustentava-me. Lídia habitava-o como viola em enterro, a desmanchar o ambiente.
Nada acomodatícia. Era a velha linguagem dos opostos que se buscam. Ou seria
apenas a vida na diversidade do seu curso. Sem querer saber de nós.
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