quinta-feira, 3 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

No largo da igreja, as pessoas acasulavam em magotes zumbindo conversas que surdiam em apreciações de pente fino a cada conviva que aportava. Obliterado o ser de todos os dias, o núcleo dos convidados mantinha-se isolado da maralha e muito composto, destacando da ralé a que pertencia em todas as horas menos naquela e quedava-se junto ao templo, convites da noiva a um lado e do noivo a outro, avaliando-se mutuamente para não deixar em pouco a representação. Cada um  aliviava reconhecendo para os seus botões, este lado tem pessoas muito mais finas e bem vestidas.  Exacerbados de aparência, ainda que vizinhos naturais e vivendo em portas e ruas contíguas, estranhavam-se entre si: homens de sapato engraxado em asfixia de gravata e apertos de casaco; mulheres contrariando o hábito de perna ao léu, erguidas sem treino em sapatos de salto e meia de vidro, a pilosidade acamada sob o nylon a azular-lhes as pernas, inconformismo de um pêlo ou outro a romper nos poros das meias. As mulheres que pareciam outras, uma altura desmedida de cabelo disposto em ninho invertido, receptáculo de ganchos e carramiços forjados em salões de cabeleireira, malitas desasadas a pender dos mesmos braços que  retesavam no vime dos cestos, ou afeitos à brusquidão cega de foices e enxadas. E as crianças. Tesas de goma e brilhantina, esmagadas por avisos de pé leve - se te sujas, meto-te em casa e levas uma pisa que vais ver -, os pés que chinelavam ano inteiro tolhidos no aperto de sapatos e meias, mal respiramos, nem um dedo podemos mexer. Jactantes e oblíquos, os garotos comparavam-se de viés, agitando a episódica fortuna de fios com crucifixo, pulseiras e medalhinhas e, pé ante pé, faziam-se próximos a pavonear-se na vestimenta. As mães com sete olhos, não te esqueças do que te disse e nada de corridas que desmanchas o cabelo; vê lá não se abra o fecho, se perdes o fio ou a pulseira avéns-te com o teu pai.

Foi neste entrementes que o carro do Laurentino deu uma volta lenta e parou em frente da escadaria. Soou o boato, é a noiva que vem num carro de praça. Mas logo alguém emendou antes que o círculo apertasse e os pescoços esticassem, nada! É só a velha Carmelita e mais a gaiata que tem lá em casa. E eu vaidosa sem controlo, como se fora gente de importância. O Laurentino de mão na porta, indeciso, pego-lhe ao colo D. Carmelita?. Então a madrinha piscou-me o olho, exigiu-lhe o braço a redobrar mazelas da idade e o homem deu uma pressurosa volta ao automóvel que eu aproveitei para escorregar do banco e descer sozinha do coche.   Depois, ouvi alguns cochichos, a velha tem roupas boas, dantes vivia bem, diz que o marido tinha um bom emprego. E algumas depreciativas invejas, um fio de maldade a perpassar, uma velha com os pés para cova e de chapéu, tché! Sempre a gente vê cada coisa. E eu que estava tão contente de mim, não mereci palavra; nada para o vestido, os laços, os sapatos a que tinha dado brilho com casca de banana. Lembrei-me de Lídia. Já se teria feito notar, deitava a língua de fora a uma data de gente, dava umas caneladas aos garotos mais impertinentes e seguia em frente de nariz no ar, sobranceira. Lídia era compacta, impunha-se em bloco e não era fácil esquecê-la. Umas vezes sem intenção e outras por raiva propositada, a memória, pelo menos a minha, ressaltava-lhe a densidade. Impunha-a, solene. Mas eu não era ela. Tudo em mim negava brigas e provocações. O meu sub reptício era o desejo de agradar a algumas poucas pessoas, a vontade de ter no meu canto quem que me protegesse e gostasse. O resto podia fluir, passar, ruir, não me pertencia. Nesse tempo, como talvez em todo o meu tempo,  o nicho sustentava-me. Lídia habitava-o como viola em enterro, a desmanchar o ambiente. Nada acomodatícia. Era a velha linguagem dos opostos que se buscam. Ou seria apenas a vida na diversidade do seu curso. Sem querer saber de nós. 

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