As
crianças crescem de descoberta em descoberta, sem ajoujos e contrapesos de
adulto. Em nós, as novidades eram só isso, notícias de coisas e pessoas
desconhecidas. Não nos entravam na pele nem coíbiam a alegria. Descobrir as
coisas era sabê-las sem consequências; e, se não apareciam geminadas ao nosso
quotidiano, depressa as relegávamos para as traseiras da memória.
Interessava-nos a vida da escola e os humores da mestra, os pais em casa ou
fora dela, a ocupação das horas livres, a catequese em horas de escola. A
catequese era o melhor da escola. A
professora devinha um mimo de simpatia e bondade, e padre Baltazar brindava-nos
com sorrisos e palavras mansas que abriam portas a sermos bons a vida inteira e
nos lançavam ao caminho santidades inquebráveis. Por mim, nos dias que se
seguiam à visita, porfiava por cumprir o que ele ditava, embora receando
auréolas assustadiças a pairar-me sobre a cabeça, enquanto Lídia caçoava dos
meus esforços e, mais entendida que eu em santos, garantia, não há perigo, essa
coisa por cima da cabeça não existe, é tudo mentira, não vês que aquilo é só
uma argola de arame pintada de amarelo e que brilha. Mas depois, quando eu já
quase descansava do temor, olhava-me analítica e estragava tudo, tu podes ser
santa sim, está-te nos olhos. E eu que confiava nela a pés juntos, ia ajoelhar
frente à cómoda da sala, única faixa espelhada que possuíamos lá em casa, a
observar-me com atenção a fim de verificar onde embutia o sinal da sacralidade
para eliminação rápida. Depois, farta de experimentar outros olhos sem
resultado que se visse, ia brincar e esquecia o assunto. Para o Luís, talvez
por ser rapaz, a visita do padre assumia outro pendor. Primeiro a expensas da
professora, e depois por iniciativa própria, seguia-lhe os passos qual sombra, até o carrito preto desaparecer. Parecia-nos
impossível que padre Baltazar coubesse lá dentro, razão porque, sempre que
podíamos, íamos observá-lo a entrar. Cientes de que um dia lhe faltaria espaço
para uma perna, ou a porta não fechava, o volume do corpo a sobrar. O que não
aconteceu, o mais perto que estivemos foi quando um pedaço da batina entalou na
porta e passou por nós em aceno contente do ventinho que lhe corria. Mas logo o
Luís correu atrás e lhe apontou o descuido, o padre abriu e fechou a porta e
acabou-se a alegria da batina. Nessa altura, já Luís o acolitava quando ao domingo
chegava à escola e juntos empilhavam as carteiras todas lá atrás para a celebração.
E nós felizes por respondermos num latim
macarrónico que não entendíamos “e conspirituó”, mudos para o resto das falas
que as mães não nos ensinavam. Durante a missa, os homens zurziam o padre na vizinha
taberna, entre copos de cinco e de dez, já meios bêbados como era praxe àquela
hora da tarde, numa má vontade avinhada, raio do padre, que é que tinha de vir
dizer missa à escola, não há igreja não há missa, ora essa. E depois lançavam-se
numa maledicência de amantes sem destino que gostavam de lhe atribuir e como
que os deixava mais descansados. No
interior da escola, as velhas todas
juntas num mau cheiro de pouco sabão, os carrapitos puxados acima com brio e
véus pretos ou lenços na cabeça, a balbuciar contas de terço pegados a mãos
encardidas e gretadas, que lhes saiam dos xailes, sem entender patavina do
latim, mas cantando no final, com voz tremente, “Hossaaaana, hossaaaana, raiiinha
de Portugaaal”. E nós ficávamos boquiabertos da entropia entre a pátria e Nossa
Senhora que um rei fizera Nossa Rainha pelos séculos fora e por ouvir bocas
afeiçoadas a asneiras e gritos a fazerem-se maviosas; empreendíamos nos olhos
diferentes das nossas mães para aquela redondela branca que o padre elevava como
se fosse uma relíquia e toda a gente ajoelhar e baixar a cabeça; pasmávamos da
força que lhes vinha não sabíamos de onde quando enclavinhavam as mãos uma na
outra e mexiam os lábios tão baixinho que nós, mesmo a seu lado e em atenta escuta,
nada entendíamos. Não havia senão a imagem do cristo crucificado que nos
acompanhava as aulas, e ele continuava igual, mortiço e metalizado, sofredor. Mas
elas olhavam-no com ânsia desconhecida, o rosto mais sofrido que o dele, olhos
a marejar. E enquanto isso, Luís apagava
as velas acesas na secretária da professora que fora altar, dobrava a toalhinha
branca do padre, levava para o carro missal, cálice e tudo que padre Baltazar
trouxera. Durante esse tempo, o padre tirava a opa, dobrava-a no braço,
ajoelhava e punha o rosto entre as mãos. E ficava assim, sem olhar o crucifixo,
sem bolir. E nesses momentos em que a igreja desmanchava e as mulheres saiam
aos cochichos cada vez mais audíveis, eu ouvia Cristo, via-o junto ao padre.
Era esta a minha verdade revelada: a sua prece final e os olhos de minha mãe grudados
naquele pedaço de metal, encontravam-se fora do mundo e daí recebiam força
anímica que nos transcendia.
A
vida tem seu reverso e cobra cada alegria. E quantas vezes cobra em dobro, como
se não lhe quadre que sejamos alegres e nos aponte a contenção. Na escola, também tínhamos visitas desastrosas: a chegada do pessoal médico era o
inferno das crianças. Mesmo daqueles que, como o Luís eram fortes e se gabavam
de gostar. Ou de Lina que continuava impávida as sua tarefas e a quem
médicos e enfermeiras não estremeciam um músculo.
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