segunda-feira, 28 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

As crianças crescem de descoberta em descoberta, sem ajoujos e contrapesos de adulto. Em nós, as novidades eram só isso, notícias de coisas e pessoas desconhecidas. Não nos entravam na pele nem coíbiam a alegria. Descobrir as coisas era sabê-las sem consequências; e, se não apareciam geminadas ao nosso quotidiano, depressa as relegávamos para as traseiras da memória. Interessava-nos a vida da escola e os humores da mestra, os pais em casa ou fora dela, a ocupação das horas livres, a catequese em horas de escola. A catequese era o melhor da escola.  A professora devinha um mimo de simpatia e bondade, e padre Baltazar brindava-nos com sorrisos e palavras mansas que abriam portas a sermos bons a vida inteira e nos lançavam ao caminho santidades inquebráveis. Por mim, nos dias que se seguiam à visita, porfiava por cumprir o que ele ditava, embora receando auréolas assustadiças a pairar-me sobre a cabeça, enquanto Lídia caçoava dos meus esforços e, mais entendida que eu em santos, garantia, não há perigo, essa coisa por cima da cabeça não existe, é tudo mentira, não vês que aquilo é só uma argola de arame pintada de amarelo e que brilha. Mas depois, quando eu já quase descansava do temor, olhava-me analítica e estragava tudo, tu podes ser santa sim, está-te nos olhos. E eu que confiava nela a pés juntos, ia ajoelhar frente à cómoda da sala, única faixa espelhada que possuíamos lá em casa, a observar-me com atenção a fim de verificar onde embutia o sinal da sacralidade para eliminação rápida. Depois, farta de experimentar outros olhos sem resultado que se visse, ia brincar e esquecia o assunto. Para o Luís, talvez por ser rapaz, a visita do padre assumia outro pendor. Primeiro a expensas da professora, e depois por iniciativa própria, seguia-lhe os passos qual sombra,  até o carrito preto desaparecer. Parecia-nos impossível que padre Baltazar coubesse lá dentro, razão porque, sempre que podíamos, íamos observá-lo a entrar. Cientes de que um dia lhe faltaria espaço para uma perna, ou a porta não fechava, o volume do corpo a sobrar. O que não aconteceu, o mais perto que estivemos foi quando um pedaço da batina entalou na porta e passou por nós em aceno contente do ventinho que lhe corria. Mas logo o Luís correu atrás e lhe apontou o descuido, o padre abriu e fechou a porta e acabou-se a alegria da batina. Nessa altura, já Luís o acolitava quando ao domingo chegava à escola e juntos empilhavam as carteiras todas lá atrás para a celebração. E nós felizes por respondermos  num latim macarrónico que não entendíamos “e conspirituó”, mudos para o resto das falas que as mães não nos ensinavam. Durante a missa, os homens zurziam o padre na vizinha taberna, entre copos de cinco e de dez, já meios bêbados como era praxe àquela hora da tarde, numa má vontade avinhada, raio do padre, que é que tinha de vir dizer missa à escola, não há igreja não há missa, ora essa. E depois lançavam-se numa maledicência de amantes sem destino que gostavam de lhe atribuir e como que os deixava mais descansados.  No interior da escola,  as velhas todas juntas num mau cheiro de pouco sabão, os carrapitos puxados acima com brio e véus pretos ou lenços na cabeça, a balbuciar contas de terço pegados a mãos encardidas e gretadas, que lhes saiam dos xailes, sem entender patavina do latim, mas cantando no final, com voz tremente, “Hossaaaana, hossaaaana, raiiinha de Portugaaal”. E nós ficávamos boquiabertos da entropia entre a pátria e Nossa Senhora que um rei fizera Nossa Rainha pelos séculos fora e por ouvir bocas afeiçoadas a asneiras e gritos a fazerem-se maviosas; empreendíamos nos olhos diferentes das nossas mães para aquela redondela branca que o padre elevava como se fosse uma relíquia e toda a gente ajoelhar e baixar a cabeça; pasmávamos da força que lhes vinha não sabíamos de onde quando enclavinhavam as mãos uma na outra e mexiam os lábios tão baixinho que nós, mesmo a seu lado e em atenta escuta, nada entendíamos. Não havia senão a imagem do cristo crucificado que nos acompanhava as aulas, e ele continuava igual, mortiço e metalizado, sofredor. Mas elas olhavam-no com ânsia desconhecida, o rosto mais sofrido que o dele, olhos a marejar.  E enquanto isso, Luís apagava as velas acesas na secretária da professora que fora altar, dobrava a toalhinha branca do padre, levava para o carro missal, cálice e tudo que padre Baltazar trouxera. Durante esse tempo, o padre tirava a opa, dobrava-a no braço, ajoelhava e punha o rosto entre as mãos. E ficava assim, sem olhar o crucifixo, sem bolir. E nesses momentos em que a igreja desmanchava e as mulheres saiam aos cochichos cada vez mais audíveis, eu ouvia Cristo, via-o junto ao padre. Era esta a minha verdade revelada: a sua prece final e os olhos de minha mãe grudados naquele pedaço de metal, encontravam-se fora do mundo e daí recebiam força anímica que nos transcendia.

A vida tem seu reverso e cobra cada alegria. E quantas vezes cobra em dobro, como se não lhe quadre que sejamos alegres e nos aponte a contenção. Na escola, também tínhamos visitas desastrosas: a chegada do pessoal médico era o inferno das crianças. Mesmo daqueles que, como o Luís eram fortes e se gabavam de gostar. Ou de Lina que continuava impávida as sua tarefas e a quem médicos e enfermeiras não estremeciam um músculo.

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