Até
ao carro, bem cosida, apurava-se uma
courela de gente. E nós feitas toupeiras, a esgarçar-nos por intervalos de
roupas e corpos, perseguindo-nos uma à outra através de mãos abandonadas ao rés
de saias, a contornar o perigo de cotovelos atirados para trás, pernas grossas
como troncos a cerrar-nos caminho, rabos tão maciços que nos escondiam e
apagavam a figura, cheiros de suor e alguma coisa estranha que ainda não
sabíamos o que fosse. E não sei de chegar primeiro ou último, sei que dei por
mim a ofegar de frente para a nuvem; ignoro se de frente, mas ela olhava-me em
azul sereno, sentada a meio do banco. Estaquei, talvez admirada, talvez
sorrindo. E foi seguramente o fenómeno mais bonito da minha infância. Era uma
rapariga desconhecida, vinda de outra aldeia. Luzia um vestido completamente
branco, rugoso de ramos e florinhas que cintilavam à luz e me impressionou
demais. O único feitio eram os botões pequenos a que não vi começo e que subiam
até ao pescoço, rematando numa gola conhecida por “gola de padre”. Abotoados
por ilhós, acompanhavam a linha do peito, primeiro a subir e depois descendo, em
intervalos muito pequenos e iguais. A noiva era meio alourada e tinha o que a
minha avó apelidava de “jeitos no cabelo”, sem ares de cabeleireira ou qualquer
artifício; na testa e junto às têmporas, uns cabelitos mais curtos
encaracolavam com alguma graça e davam-lhe um ar menino. Velava-lhe a
cabeça, um véu de tule simples e amolecido, que devia ser bem comprido tal o amontoado sobre
o porta bagagens, e que caía dos lados do rosto num
friso arqueado de florinhas brancas iguais ao dos nossos véus da igreja. Mas o
que mais me surpreendeu foram os olhos. Não que os tivesse extraordinários,
eram azuis, sem outra beleza que serem olhos, mas havia neles uma
expressão incomensurável que hoje sei provir da confiança num futuro de
companhia. Deliberada e docemente exposta, lembrava imagem de igreja:
não tinha sorriso aberto, nem um dente se lhe via, mas planava superior, numa
nuvem para que não tínhamos caminho; nenhum mal poderia atingi-la.
Então
desataram-se as matracas, o trabalhão que o Luís vai ter logo à noite com
aqueles botões – e riam-se; tão bonita que ela está, nem parece a mesma que,
sem ofensa, a rapariga até é feiazita, conheço-a
bem, ainda é parente da minha comadre – e eu a atirar um olhar eriçado à maldizente; as noivas são todas bonitas, é bem verdade; vejam bem o
vistão que ela fez, é que nem parece a mesma, concluía o pessoal a dispersar.
Entretanto, o Bento da loja, sem o lápis atrás
da orelha e todo enfarpelado em cerimónia, enxotava o resto da gaiatagem a poder de rebuçados
atirados em gesto de semeadura para o meio do adro e abria a porta traseira do carro a resmungar, ainda me dão cabo da
carroçaria, todos aqui encostados - e mirando o vidro da porta - olha pra este
trabalho, há dedadas em todo o lado, mal empregado tempo que perdi a lavar a furgonette; devem pensar que isto é alguma carroça. Foi
quando deu de caras comigo e com a menina do chapéuzito e nos recrutou, olhem
lá vocês duas, esperem aí um bocadinho que eu não me ajeito com isto de véus e
noivas e ainda tenho que ir buscar a mulher e fechar a loja. E Maria
Rita prestável, num sorriso de covinhas, pode deixar, eu sei como é. O problema
foi que eu não sabia como era e fiquei fascinada pelo pé que a noiva deitou
fora do carro. E não era para menos, tinha um sapato branco de salto alto mais
bonito que o da gata borralheira quando fugiu do baile. E depois admirei os dois pés e o véu inteiro a colar no vestido e a sobrar, a sobrar, que nunca mais acabava. Quando dei por isso, a
noiva já ia a meio da escada, Maria Rita atrás a pegar no véu, o Bento fora de
orbita e eu no pedrisco, sozinha, toda a gente na igreja. Ainda pensei correr um bocadinho e apanhá-las,
mas uma força prendeu-me ao lugar, parou-me as pernas. Vi-as entrar as duas, bonitas e conjugadas.
Eu não cabia naquele quadro.
Quando
as pernas deram licença, juntei-me a madrinha Carmelita e ela deitou-me a asa
sem perguntas. E fiquei ali, protegida na sua gordura aveludada que cheirava um
bocadinho a naftalina e a sabonete, ocupada em ser criança de pernas desobedientes, pensando na verdade do ditado "todas as noivas são bonitas", perguntando-me se seriam bonitas devido à frase mágica ou se a magia estava em ser noiva. indiferente ao acontecer da
cerimónia.
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