segunda-feira, 7 de março de 2016

"No Tempo da Escola"

Até ao carro, bem cosida, apurava-se  uma courela de gente. E nós feitas toupeiras, a esgarçar-nos por intervalos de roupas e corpos, perseguindo-nos uma à outra através de mãos abandonadas ao rés de saias, a contornar o perigo de cotovelos atirados para trás, pernas grossas como troncos a cerrar-nos caminho, rabos tão maciços que nos escondiam e apagavam a figura, cheiros de suor e alguma coisa estranha que ainda não sabíamos o que fosse. E não sei de chegar primeiro ou último, sei que dei por mim a ofegar de frente para a nuvem; ignoro se de frente, mas ela olhava-me em azul sereno, sentada a meio do banco. Estaquei, talvez admirada, talvez sorrindo. E foi seguramente o fenómeno mais bonito da minha infância. Era uma rapariga desconhecida, vinda de outra aldeia. Luzia um vestido completamente branco, rugoso de ramos e florinhas que cintilavam à luz e me impressionou demais. O único feitio eram os botões pequenos a que não vi começo e que subiam até ao pescoço, rematando numa gola conhecida por “gola de padre”. Abotoados por ilhós, acompanhavam a linha do peito, primeiro a subir e depois descendo, em intervalos muito pequenos e iguais. A noiva era meio alourada e tinha o que a minha avó apelidava de “jeitos no cabelo”, sem ares de cabeleireira ou qualquer artifício; na testa e junto às têmporas, uns cabelitos mais curtos encaracolavam com alguma graça e davam-lhe um ar menino. Velava-lhe a cabeça, um véu de tule simples e amolecido, que devia ser bem comprido tal o amontoado sobre o porta bagagens, e que caía dos lados do rosto num friso arqueado de florinhas brancas iguais ao dos nossos véus da igreja. Mas o que mais me surpreendeu foram os olhos. Não que os tivesse extraordinários, eram azuis, sem outra beleza que serem olhos, mas havia neles uma expressão incomensurável que hoje sei provir da confiança num futuro de companhia. Deliberada e docemente exposta, lembrava imagem de igreja: não tinha sorriso aberto, nem um dente se lhe via, mas planava superior, numa nuvem para que não tínhamos caminho; nenhum mal poderia atingi-la.
Então desataram-se as matracas, o trabalhão que o Luís vai ter logo à noite com aqueles botões – e riam-se; tão bonita que ela está, nem parece a mesma que, sem ofensa, a rapariga até é feiazita,  conheço-a bem, ainda é parente da minha comadre – e eu a atirar um olhar eriçado à maldizente; as noivas são todas bonitas, é bem verdade; vejam bem o vistão que ela fez, é que nem parece a mesma, concluía o pessoal a dispersar.
 Entretanto, o Bento da loja, sem o lápis atrás da orelha e todo enfarpelado em cerimónia,  enxotava o resto da gaiatagem a poder de rebuçados atirados em gesto de semeadura para o meio do adro e abria a porta traseira  do carro a resmungar, ainda me dão cabo da carroçaria, todos aqui encostados - e mirando o vidro da porta - olha pra este trabalho, há dedadas em todo o lado, mal empregado tempo que perdi a lavar a furgonette;  devem pensar que isto é alguma carroça. Foi quando deu de caras comigo e com a menina do chapéuzito e nos recrutou, olhem lá vocês duas, esperem aí um bocadinho que eu não me ajeito com isto de véus e noivas e ainda tenho que ir buscar a mulher e fechar a loja. E Maria Rita prestável, num sorriso de covinhas, pode deixar, eu sei como é. O problema foi que eu não sabia como era e fiquei fascinada pelo pé que a noiva deitou fora do carro. E não era para menos, tinha um sapato branco de salto alto mais bonito que o da gata borralheira quando fugiu do baile. E depois admirei os dois pés e o véu inteiro a colar no vestido e a sobrar, a sobrar, que nunca mais acabava. Quando dei por isso, a noiva já ia a meio da escada, Maria Rita atrás a pegar no véu, o Bento fora de orbita e eu no pedrisco, sozinha, toda a gente na igreja. Ainda pensei correr um bocadinho e apanhá-las, mas uma força prendeu-me ao lugar, parou-me as pernas. Vi-as entrar as duas, bonitas e conjugadas. Eu não cabia naquele quadro.

Quando as pernas deram licença, juntei-me a madrinha Carmelita e ela deitou-me a asa sem perguntas. E fiquei ali, protegida na sua gordura aveludada que cheirava um bocadinho a naftalina e a sabonete, ocupada em ser criança de pernas desobedientes, pensando na verdade do ditado "todas as noivas são bonitas", perguntando-me se seriam bonitas devido à frase mágica ou se a magia estava em ser noiva. indiferente ao acontecer da cerimónia.

Sem comentários:

Enviar um comentário