segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Coisas

A maioria dos provincianos como eu vai a Lisboa  e volta recheado de novidades. Ele são livros, modas, sapatos, carteiras, lingerie... No comboio de regresso, contam-me as compras com pormenor e, num resmalhar de sacos plásticos onde o braço se afunda em pescaria grossa, chegam mesmo a exibi-las para apreço. Quedo-me embasbacada perante tanta maravilha que não enxerguei. Nunca vejo pechinchas e bonitezas genuínas senão na mão da outra gente, ainda que pare nas mesmas montras, atravesse as mesmas ruas, entre nas mesmas lojas.  Pode parecer-vos que volto de mãos a abanar, mas não. Trago lembranças. Depois de apetecer padrões, palpar os cabedais, avaliar rendas e etc, chega-me a vez de mostrar. E a minha vez sou eu. Na minha vez entra o riso, o sorriso, a palermice encartada que idiotamente me veste. Porque, na verdade, ainda não entendi se há coisas que só a mim acontecem, ou se acontecem a toda a gente e só eu as conto. Pois. Não sei. E nem agora isso tem interesse.
Bom. Hoje, por exemplo, fui à ginecologista, função que sofro mal e a que afecto um premente desejo de fuga. Já mudei do masculino para o feminino, mas concluo que o género do observador não me altera o sentir. I hate that. Há anos que não nos víamos - eu e a médica. Mas nenhuma de nós é efusiva ou gosta particularmente da outra. Portanto, sentei-me na sua frente a curtir a ansiedade e a antecipar, a seguir é que vai ser o elas. Ou seja, a sofrer um bocadinho pouco. E ela à nora com a informática. Aflita porque queria consultar-me e parece que o sistema me negava – o palerma do sistema. 
Quando finalmente o meu eu digital lhe chegou, mandou o meu ser físico e palpável aligeirar-se de roupas na sala de tortura e lá veio a enfermeira pôr o lençol – sempre me deixa um pouco mais confortável – e ajeitar as pernas. E fica uma pessoa naquele esterlaio. É que não sei como é que alguém se pode sentir à vontade em posição tão estrambólica e à espera que se acenda uma lâmpada que decerto nos desvela o interior mais interno e só não chega aos gorgomilos por haver carne emparedada de permeio. 
Enfim. O mau, mesmo mau, é aquela goela de pato com bico e tudo a enfiar-se por uma pessoa dentro. Estava eu tentando controlar-me para evitar gritos quando oiço a médica, a senhora não tem útero. Já foi operada? E eu admiradíssima, as pernas a retesar nos suportes, não tenho?! Mas não fiz qualquer cirurgia para esses lados. E ela a espreitar e magoar-me ainda mais, não o vejo, não tem. E eu a empurrá-la na busca apesar daquele bico aberto cá dentro, há de andar por aí, penso eu - e numa réstea já dubitativa -. Só se entretanto o perdi, mas não dei por isso. Entretanto, a enfermeira aproximou-se e espreitou também (não há direito, fazerem isto a uma pessoa).  Eu com vontade de mandar passear o pato, dar uma volta num lago qualquer, enfim, deixar-me em paz. E a médica a forcejar a goela aberta, tem que estar aqui então, mas não o encontro. 
E depois de procurar com o que eu imagino fosse mesmo aquele bico rombo que só me doía, está aqui. Desculpe, está aqui, não o via. 
Respirei. 
E depois seguiu-se o de sempre: lamelas, palpações, requisição de exames... o diabo a sete. Num ápice, vesti-me e desapareci do consultório.
Para que conste: estou de mal com o meu útero. Não me avisou, o fedelho. E deve estar mais enfezado que as lonas de um pneu vazio. Nos automóveis, se temos um furo, é um chinfrim desgraçado. Mas em nós tudo murcha sossegadamente. Nem um adeusinho, vou involuir, passe bem. Ora bolas.

Garanto, se eu pudesse ou acaso soubesse como fazer, deixava-o cair no alcatrão. Havia de passar um carro e atropelá-lo. Por causa das coisas.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  2. Pois tive de remover a pensar que era de todo removido e que ninguém dava por nada, pois só no final me dei conta que tinha o mail «profissional» aberto. E não se deve misturar o público com o privado!!! O que eu não sabia é que tu ficavas a saber que a Luísa Paula tinha deixado um comentário. Já não deu para abrir o outro mail e comentar a partir dele!!!
    Este teu post fez-me rir e fez-me bem!!!
    Não és apenas alguém que escreve, tu tens sensibilidade, ritmo,estilo. Estou a ler um livro da misteriosa (que já não é misteriosa, Elena Ferrante. Há alguma coisa no teu tom parecido com o dela. Naõ sei bem dizer, mas uma certa capacidade de emocionar, de comover, de modo distante. É um paradoxo, bem sei, mas foi o que me saiu. Bjs, querida Bea

    ResponderEliminar
  3. Oh! Estás vendo? Era por isso que eu queria que cá viesses. Para rires. Porque te faz bem. E a mim acontecem-me estas parvidades a toda a hora.

    O que eu gosto desta anónima!

    Hummm...Elena Ferrante escreve bem, sabe muitíssimo mais que eu e etc e tal. Mas obrigada sempre.
    Dorme bem, ouviste garota anónima? (ou leste)

    ResponderEliminar
  4. Este post é absolutamente delicioso...
    Por momentos vi-me a mim a ser atormentada pelo temível bico de pato!

    ResponderEliminar