domingo, 30 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Estava ainda entretendo tempo quando senti uns passos cautelosos junto à tenda. Relanceei o cadeado e continuava quedo. Quando julgava que seria um pescador a passar e a minha atenção se desviava, voltavam em cautelas, próximos, próximos. Ainda pensei que fossem uns dois ou três pescadores em fila indiana, mas a teoria começou a tornar-se insustentável pela proximidade que mantinham, alguém rodeava as tendas. Atentei melhor e verifiquei que eram sempre os mesmos pés, passada nem muito curta nem muito longa, o pé assente com a mesma falta de força, como se um cuidado na forma de calcar a areia molhada. Intrigada, retirei o cadeado e corri os fechos. E, mesmo na frente dos meus olhos remelosos, entre as duas tendas, o pai da minha amiga, capacete na mão, meio atrapalhado. Quando me viu respirou fundo e disse, Ah, menina! Sempre são vocês que estão aqui. – e um sorriso alargou-se-lhe pelo corpo.  
Nesse preciso instante, correram-se os fechos da outra tenda e a minha amiga toda caracóis dorminhocos, olhos a piscar surpresas, o que é que tu estás aqui a fazer pai?! E em cenário, os estremunhados ponto de interrogação  da minha irmã e do rapaz. O senhor virou ligeiramente o tronco para o lado da tenda dela e ficou a sorrir à filha e a rodar o capacete nas mãos entre o desajeitado de nos ter acordado e a satisfação de saber que estávamos todos bem e adiantou, estávamos preocupados a tua mãe e eu, a trovoada foi tão grande que subi para a lambreta e vim até cá – e num desabafo - . Não sabia se eram vocês…e depois a brincar com os meus irmãos, então, não tiveram medo? As mãos da minha irmãzita numa pressa, apalpadelas cegas junto ao varão de trás da tenda onde deixara os óculos, e o meu irmão a ignorar a pergunta, curioso, veio numa lambreta? Onde é que ela está? A garota com o tempo da resposta esgotado, apenas sorrindo, olhinhos minúsculos por detrás das lentes,  os óculos a remoer, é sempre o mesmo, nunca nos encontras à primeira.
E depois ficámos por ali a acordar e responder ao que perguntava, a minha amiga, talvez constrangida, sempre a instá-lo a deixar-nos. Mas o pai não lhe fez caso, aproximou a lambreta e só foi à sua vida quando se convenceu que estávamos bem. Pensei no meu progenitor, nunca a sua preocupação o faria deslocar. E tive inveja da minha amiga e da atenção que merecia. Terá o meu pai pensado em nós nesses dias?! Creio que sim. Do que não se sabe, é preferível escolher o melhor.
Entretanto, descobrimos que o restaurante só reabria no verão e o suposto pequeno-almoço esfumou.  Os nossos vizinhos da frente foram lá acima comer e trouxeram depois  alguma coisa à tenda das crianças.

Pela tarde, a chuva regressou em força. A essa altura já destináramos o jantar, tínhamos água potável e estavam marcadas as bacias de abluções matinais, no em baixo e no em cima, e o lugar da retrete que não havia. O mar quase só o espreitávamos pela janelinha de plástico em que o meu irmão fazia gala, o rostozinho moreno e miúdo a assomar-se.
Nessa tarde, resolvemos ler, cada grupo em sua tenda para criar mais ambiente. De notável só o nosso amigo, que era - e ainda é - um rapaz divertido e resolveu colocar um sutiã da nossa comum amiga na cabeça, atá-lo debaixo do queixo e aparecer-nos à tenda naquela figura atraente. Quando enfiou a cabeça no interior e, boa tarde!, eu tinha mergulhado fundo. Olhei e nem o reconheci, parecia-me o Sacadura Cabral ou o Gago Coutinho com o equipamento de vôo que devia ser um capacete com os óculos a encimar. Retirada ao meio das letras estava ainda mais obtusa que normalmente, embora estranhasse a figura. Depois, e para meu espanto, o Sacadura Cabral trouxe também o corpo para dentro da tenda numa confiança de pernas que achei um despropósito, atirou uma gargalhada e, num alentejano arraçado de algarvio,  atão... não me digam que já não me conhecem. Os meus irmãos desataram numa risota e eu idem. Porém, desatendida do sutiã, arrematei, é pá...parecias-me mesmo o Sacadura Cabral, onde é que tu arranjaste isso? E ele, tás a falar a sério? Eu, sim; é tão engraçado, compraste? E ele, tão mas afinal quem é que vê mal, não é a tua irmã? Eu, mau, então isso é o quê. Ele puxando os pontiagudos do sutiã sobre a cabeça, como se fossem umas orelhas, ainda não viste o que é? Os meus irmãos riam a bandeiras despregadas e ela benemérita, por entre gargalhadas, não vês que é um sutiã? Eu numa admiração de riso, ah, pois é, vira-te lá, levanta o pescoço. E etc. Mas sem abdicar da primeira impressão, é que pareces mesmo o Sacadura Cabral. Palavra.

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