Desembocámos
na praia sem tempo de olhá-la, aflitos de chuva e tralha, olhos e mente numa
avaliação do melhor lugar para as tendas. Escolhemos a entrada mais perto do
restaurante à beira mar, onde faríamos abastecimento de urgências, eu a
formular mentalmente votos para que os dez minutos de montagem não excedessem.
E lançámo-nos todos a cumprir ordens do orientador experiente que decidira
armá-las face a face, tradição que respeitámos durante os nove anos em que as
férias mais nos uniam.
Depois
de armada a primeira barraquinha azul-laranja, a nossa, agasalhámos pertences e
resolvemos almoçar. Limpámos cabeças molhadas a toalhas de banho, eu a apalpar
os braços dos meus irmãos, é melhor tirarem os casacos. Depois, sentámo-nos em
roda e almoçámos. Divertimo-nos tanto ou mais que os cinco nos seus petiscos de
que as nossas sandes escarneciam, alegres de tudo. A chuva no pano soava a
maravilha, sentíamo-nos secos e em segurança e tínhamos três dias pela frente
que, em futurologia optimista, seriam de sol.
Enquanto
o céu se desfazia, jogámos a tudo que sabíamos e ao que que inventámos. E, quando
o aguaceiro abrandou, gestos munidos de prática, montámos a outra tenda.
Entretanto, fizéramos a partilha do pessoal pelas barracas: eu e os meus irmãos
mais novos numa, os meus amigos e a minha irmã mais velha noutra, cenário que
vigorou até ao meu casamento.
À
medida que entardecia – mais cedo do que esperávamos -, nós duas avaliávamos o
conjunto de necessidades. A fim de lhes pôr cobro, os ocupantes da outra tenda
decidiram fazer uma viagem de reconhecimento: precisávamos descobrir uma fonte
de água doce, saber onde comprar pão, leite e fruta, e adquirir os alimentos
necessários ao jantar.
Demoraram
eternidades e já escurecia quando divisámos, descendo para a praia, as
silhuetas da nossa preocupação. Pareciam meios desanimados, mas sabiam qual a
torneira mais próxima para recolha de água e traziam um projecto de jantar.
Tinham calcorreado ruas do sem fim para encontrá-lo. Deitámos mãos à obra de
cozinhar dentro da tenda deixando para trás o romantismo de um fogo ao ar
livre, lenha das árvores a crepitar sem fumo, nós sentados à apache, a beber
chá em púcaros, como víamos nos filmes do oeste. Não havia tempo para sonhos
cor-de-rosa, a fome e o mau tempo ameaçavam. A ementa há-de ter sido semelhante
a batatas cozidas com alguma coisa e salada. Para nos animarmos, fazíamos fé na
minha amiga, amanhã vamos todos tomar o pequeno-almoço ali ao restaurante, é a
refeição menos cara, e já está. Comemos o mais que pudermos para não termos
muita fome ao almoço.
Não
contente com a tarde que nos enviara, o céu resolveu atirar-nos uma senhora
trovoada nocturna. Tínhamos comprado um cadeado que prendia interiormente os três
fechos das tendas e nos dava a falsa ideia de segurança. Mas nessa noite em que
pouco dormi e abençoei vezes sem conta a blusa polar do meu namoradinho, os
ladrões nem me lembraram. Enquanto os meus irmãos dormiam, sentia o mar a aproximar
da tenda e a trovoada a estrondear e pensava parvamente que a tenda estava debaixo
de uma árvore meia morta e que podia atrair um raio. Então, tapava melhor os
meus irmãos, a tactear-lhes pernas e braços no escuro, auscultando em
simultâneo a distância do mar. Talvez por serem crianças, porque as emoções do
dia os esgotassem, ou porque se tinham levantado antes das seis para apanhar a
carreira das seis e vinte, não pareciam sentir falta de colchão nem a frigidez
do chão que me trespassava.
Durante
a madrugada o céu aquietou a estrepitosa casa. Desceu-lhe a adrenalina de jacto
e limitou-se a uns pinguinhos suavemente cansados que cessaram com o sol. Deixei-me
ficar, esgotada de preocupação, junto aos meus irmãos adormecidos, o dia a
clarear no azul-diáfano da tenda. A supor que, na outra tenda, a tempestade também
adiara o sono, aguardei a alvorada dos mais.
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