domingo, 30 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Desembocámos na praia sem tempo de olhá-la, aflitos de chuva e tralha, olhos e mente numa avaliação do melhor lugar para as tendas. Escolhemos a entrada mais perto do restaurante à beira mar, onde faríamos abastecimento de urgências, eu a formular mentalmente votos para que os dez minutos de montagem não excedessem. E lançámo-nos todos a cumprir ordens do orientador experiente que decidira armá-las face a face, tradição que respeitámos durante os nove anos em que as férias mais nos uniam.
Depois de armada a primeira barraquinha azul-laranja, a nossa, agasalhámos pertences e resolvemos almoçar. Limpámos cabeças molhadas a toalhas de banho, eu a apalpar os braços dos meus irmãos, é melhor tirarem os casacos. Depois, sentámo-nos em roda e almoçámos. Divertimo-nos tanto ou mais que os cinco nos seus petiscos de que as nossas sandes escarneciam, alegres de tudo. A chuva no pano soava a maravilha, sentíamo-nos secos e em segurança e tínhamos três dias pela frente que, em futurologia optimista, seriam de sol.
Enquanto o céu se desfazia, jogámos a tudo que sabíamos e ao que que inventámos. E, quando o aguaceiro abrandou, gestos munidos de prática, montámos a outra tenda. Entretanto, fizéramos a partilha do pessoal pelas barracas: eu e os meus irmãos mais novos numa, os meus amigos e a minha irmã mais velha noutra, cenário que vigorou até ao meu casamento.
À medida que entardecia – mais cedo do que esperávamos -, nós duas avaliávamos o conjunto de necessidades. A fim de lhes pôr cobro, os ocupantes da outra tenda decidiram fazer uma viagem de reconhecimento: precisávamos descobrir uma fonte de água doce, saber onde comprar pão, leite e fruta, e adquirir os alimentos necessários ao jantar.
Demoraram eternidades e já escurecia quando divisámos, descendo para a praia, as silhuetas da nossa preocupação. Pareciam meios desanimados, mas sabiam qual a torneira mais próxima para recolha de água e traziam um projecto de jantar. Tinham calcorreado ruas do sem fim para encontrá-lo. Deitámos mãos à obra de cozinhar dentro da tenda deixando para trás o romantismo de um fogo ao ar livre, lenha das árvores a crepitar sem fumo, nós sentados à apache, a beber chá em púcaros, como víamos nos filmes do oeste. Não havia tempo para sonhos cor-de-rosa, a fome e o mau tempo ameaçavam. A ementa há-de ter sido semelhante a batatas cozidas com alguma coisa e salada. Para nos animarmos, fazíamos fé na minha amiga, amanhã vamos todos tomar o pequeno-almoço ali ao restaurante, é a refeição menos cara, e já está. Comemos o mais que pudermos para não termos muita fome ao almoço.
Não contente com a tarde que nos enviara, o céu resolveu atirar-nos uma senhora trovoada nocturna. Tínhamos comprado um cadeado que prendia interiormente os três fechos das tendas e nos dava a falsa ideia de segurança. Mas nessa noite em que pouco dormi e abençoei vezes sem conta a blusa polar do meu namoradinho, os ladrões nem me lembraram. Enquanto os meus irmãos dormiam, sentia o mar a aproximar da tenda e a trovoada a estrondear e pensava parvamente que a tenda estava debaixo de uma árvore meia morta e que podia atrair um raio. Então, tapava melhor os meus irmãos, a tactear-lhes pernas e braços no escuro, auscultando em simultâneo a distância do mar. Talvez por serem crianças, porque as emoções do dia os esgotassem, ou porque se tinham levantado antes das seis para apanhar a carreira das seis e vinte, não pareciam sentir falta de colchão nem a frigidez do chão que me trespassava.

Durante a madrugada o céu aquietou a estrepitosa casa. Desceu-lhe a adrenalina de jacto e limitou-se a uns pinguinhos suavemente cansados que cessaram com o sol. Deixei-me ficar, esgotada de preocupação, junto aos meus irmãos adormecidos, o dia a clarear no azul-diáfano da tenda. A supor que, na outra tenda, a tempestade também adiara o sono, aguardei a alvorada dos mais. 

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