Todas
as manhãs olhamos o dia a nascer – eu olho – e da sua luz clara nos vem ânimo e
movimento. É o mundo a acordar-nos dentro dos olhos e fora deles, a mover-nos a
luz e calor.
Movemo-nos
por dentro, ao encontro cálido dos outros que nos existem e são apenas memória
ou também realidade. Pelo menos, nesse desejo. Na vida, o álgido é morte e não-aspiração. Movemo-nos por fora, em ambientes que urgem sem pertença e que
não dominamos. E, diários, nos reservamos o direito ao ninho. Dormir, ler...
estar um par de horas a chocar. Mesmo em contrapé, sou forçada a admitir, somos
galinhentos: chocamos. Chocamos o dia seguinte desde o anterior, os maus
momentos nos bons, a ressurreição pascal nas pausas da cruzada diária. Psicólogos,
filósofos e literatos em geral desdenhariam do termo considerando-o amorfo,
ligado ao puro animal de nós. Mas o choco, mesmo o das galinhas, não é senão
uma transmissão de calor adequada e pertinaz sem a qual a eclosão da vida não
ocorre. E assim a nossa animalidade específica. Não a besta. Chocamos de forma
própria: enquanto as galinhas expelem o seu calor para o ovo, nós absorvemos
calor dos outros - directamente ou por interposto objecto – que assimilamos e
guardamos para catalisarmos no meio osmótico
em que vamos existindo. As galinhas cingem-se ao choco de pintos numa operação
abnegada mas simples, mas a nós cabe-nos chocar e distribuir calor. Ou corremos
o risco de nada nos ser verdadeiro, que o traço de pertença são as combustões
que entregamos. E as chocadeiras eléctricas restringem-se aos galináceos.
Por
vezes - poucas vezes - acontecem verdadeiros encontros. Tenho uma amiga com
quem sei que me encontro mesmo que não me encontre. Portanto, se acaso – nada
tem de acaso – nos encontramos, vale a pena. Vale em sua casa, vale na minha,
vale entre elas, vale no fim do mundo se lá chegarmos. Vale por nos gostarmos
mutuamente e nos interessar vermo-nos, falarmos, andarmos juntas um bocadinho.
Se nos juntamos, não nos abundam as grandes conversas existenciais, não
procuramos assunto e nunca ficamos sem ele. Nada temos de confidentes
extraordinárias, mas sabemos que a
família dura até à morte e que somos duas irmãs; por acaso, nascidas fora da família. Comparo-nos a Lobo Antunes com
os irmãos, “falamos pouco uns com os outros”. Quando a gente vê pouco uma
pessoa de que gosta muito o que apetece não é desenrolar o estendal das
queixas, é viver um bocadinho de quotidiano com ela, partilhar momentos em que
olha as mesmas coisas, saborear os mesmos ingredientes, afinar o passo com o
seu, conversar sem querer salvar o planeta. E são momentos assim felizes e de
choco que nos aquecem a corrente distribuidora.
Vivi
um deles há pouco tempo. Se combinamos encontrar-nos, para mim é já uma festa.
Mas não esperava tanto carinho e atenção. A gente cresce e até se esquece do
que gosta; na voragem do tempo, desabitua-se de pequenos mimos. E foi mesmo
uma surpresa aquele almoço em família, com o doce que ela faz tão bem e nem
quero aprender a fazer porque em mim tem o sabor de sua casa, do seu ambiente.
Sabe-me a ela mesma na totalidade. E fez-me bem ouvi-la dizer “meu querido”
para o filho e chamar o marido com aquele tom terno que usa, umas notas famintas pelo meio e que quase não
se dá por estarem mas estão, ditas assim em humanidade que conjuga. Tratamo-nos com diminutivos que o carinho
acrescenta e só aumentam o nome. Se calha, são kitsch, mas também originários, sabem-nos
a eles ditos por cada uma de nós.
E sei-lhe o cansaço. Sei-lhe o
desalento que às vezes desarvora. Sei-lhe o peso da vida cheia de gente para cá
e para lá, de amores diversos e quase sempre urgentes, de tanta complexidade
que o tempo traz a algumas pessoas. Mas Também lhe conheço a âncora. E é
segura.
E
é isto. Cruzámo-nos há tanto ano e jamais me esqueço de agradecer a sua
incursão no Alentejo. E por aqui andamos e andaremos.
ObrigadaJ)
Sem comentários:
Enviar um comentário