sábado, 2 de abril de 2016

As Flores do Meu Jardim

Todas as manhãs olhamos o dia a nascer – eu olho – e da sua luz clara nos vem ânimo e movimento. É o mundo a acordar-nos dentro dos olhos e fora deles, a mover-nos a luz e calor.
Movemo-nos por dentro, ao encontro cálido dos outros que nos existem e são apenas memória ou também realidade. Pelo menos, nesse desejo. Na vida, o álgido é morte e não-aspiração. Movemo-nos por fora, em ambientes que urgem sem pertença e que não dominamos. E, diários, nos reservamos o direito ao ninho. Dormir, ler... estar um par de horas a chocar. Mesmo em contrapé, sou forçada a admitir, somos galinhentos: chocamos. Chocamos o dia seguinte desde o anterior, os maus momentos nos bons, a ressurreição pascal nas pausas da cruzada diária. Psicólogos, filósofos e literatos em geral desdenhariam do termo considerando-o amorfo, ligado ao puro animal de nós. Mas o choco, mesmo o das galinhas, não é senão uma transmissão de calor adequada e pertinaz sem a qual a eclosão da vida não ocorre. E assim a nossa animalidade específica. Não a besta. Chocamos de forma própria: enquanto as galinhas expelem o seu calor para o ovo, nós absorvemos calor dos outros - directamente ou por interposto objecto – que assimilamos e guardamos para catalisarmos no meio  osmótico em que vamos existindo. As galinhas cingem-se ao choco de pintos numa operação abnegada mas simples, mas a nós cabe-nos chocar e distribuir calor. Ou corremos o risco de nada nos ser verdadeiro, que o traço de pertença são as combustões que entregamos. E as chocadeiras eléctricas restringem-se aos galináceos.
Por vezes - poucas vezes - acontecem verdadeiros encontros. Tenho uma amiga com quem sei que me encontro mesmo que não me encontre. Portanto, se acaso – nada tem de acaso – nos encontramos, vale a pena. Vale em sua casa, vale na minha, vale entre elas, vale no fim do mundo se lá chegarmos. Vale por nos gostarmos mutuamente e nos interessar vermo-nos, falarmos, andarmos juntas um bocadinho. Se nos juntamos, não nos abundam as grandes conversas existenciais, não procuramos assunto e nunca ficamos sem ele. Nada temos de confidentes extraordinárias, mas sabemos  que a família dura até à morte e que somos duas irmãs; por acaso, nascidas  fora da família. Comparo-nos a Lobo Antunes com os irmãos, “falamos pouco uns com os outros”. Quando a gente vê pouco uma pessoa de que gosta muito o que apetece não é desenrolar o estendal das queixas, é viver um bocadinho de quotidiano com ela, partilhar momentos em que olha as mesmas coisas, saborear os mesmos ingredientes, afinar o passo com o seu, conversar sem querer salvar o planeta. E são momentos assim felizes e de choco que nos aquecem a corrente distribuidora.
Vivi um deles há pouco tempo. Se combinamos encontrar-nos, para mim é já uma festa. Mas não esperava tanto carinho e atenção. A gente cresce e até se esquece do que gosta; na voragem do tempo, desabitua-se de pequenos mimos. E foi mesmo uma surpresa aquele almoço em família, com o doce que ela faz tão bem e nem quero aprender a fazer porque em mim tem o sabor de sua casa, do seu ambiente. Sabe-me a ela mesma na totalidade. E fez-me bem ouvi-la dizer “meu querido” para o filho e chamar o marido com aquele tom terno que usa,  umas notas famintas pelo meio e que quase não se dá por estarem mas estão, ditas assim em humanidade que conjuga.  Tratamo-nos com diminutivos que o carinho acrescenta e só aumentam o nome. Se calha, são kitsch, mas também originários, sabem-nos a eles ditos por cada uma de nós.
            E sei-lhe o cansaço. Sei-lhe o desalento que às vezes desarvora. Sei-lhe o peso da vida cheia de gente para cá e para lá, de amores diversos e quase sempre urgentes, de tanta complexidade que o tempo traz a algumas pessoas. Mas Também lhe conheço a âncora. E é segura.
E é isto. Cruzámo-nos há tanto ano e jamais me esqueço de agradecer a sua incursão no Alentejo. E por aqui andamos e andaremos.

ObrigadaJ)

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