domingo, 16 de novembro de 2014

As Meninas Indianas

Li esta semana sobre a morte de crianças de oito a doze anos, na Índia (não estou segura das idades). Sim, não são jovens mulheres de vinte ou mais anos, embora o crime exista pela sua natureza e não pela idade das vítimas. Mas é mais violenta a brutalidade que se exerce sobre crianças por serem indefesas, nossa esperança de mundo, futuro. Estão a esterilizá-las por decreto. É determinação estatal. Provavelmente, a ausência de condições mínimas de higiene estará na origem das mortes. E o mundo que somos nós tolera o intolerável, deixa. Deixar é um bom termo para dizer a situação de porta fechada dessas crianças abandonadas ao arbítrio de um governo obtuso, e o tal mundo global – que é o nosso -,  imperturbável. Nem um aceno. Morrem? E depois, eles são muitos, qualquer dia não cabem lá. Nós mundo apertámos a mão ao legislador que mata meninas ou lhes retira a possibilidade da maternidade. Entendemos burramente, e à semelhança do governo indiano, que a sobrepopulação baixa à custa da vida dessas muitas pobres que já morreram e das outras que irão morrer. Para quê educar?!
 Na Índia, ter filhos deixou de ser um direito. E acenamos que sim a esta pusilânime barbárie. E assistimos impávidos, mãos abertas, à violação estrondosa dos direitos humanos, neste caso, das mulheres. E é como se por ser das mulheres e ser na Índia o fragor da desgraça não haja, não há som deste lado, isolámo-las na sua campânula. Estão sós. Elas e quem ordena e pode, que é sempre assim a força dos fortes, pulveriza pessoas e fica com números e funções. Pelas nossas brancas mãos escorre a vida e o sangue quente, vermelho, dessas meninas que, se sobrevivem, nunca poderão ser mães. Olho as minhas, inertes, e penso na angústia que as invade sem aviso.  
Uma frase apanhada num salão teima em andar dentro de mim, para cá, para lá, que o pensamento baralha e dá sem que o queiramos: “ a minha Aurora não pode ter filhos, ainda pensou em adoptar, mas dissuadi-a, as adopções dão sempre mau resultado e eles estão tão bem assim…”. E depois a filha entra com passo elástico, elegante e vaporosa e está mesmo bem assim, que parece uma jovenzinha, e faz massagem para o stress em spas de luxo, e viaja, e conhece, e.
Ora Deus sabe que aceito qualquer opinião e estilo de vida desde que não prejudique terceiros; e toda a gente tem amigos que não têm filhos, por opção e sem ela. É um direito que lhes assiste. Mas não posso deixar de o dizer, a maternidade/paternidade é uma experiência única. Quem a não vive, quaisquer que sejam as situações que prefere, perde oportunidades de crescimento pessoal inimagináveis. Claro que encontra outras. Outras. Porque, tal como um primo ou um amigo não é um irmão por maior que seja a proximidade, os filhos dos outros não serão nunca nossos filhos. E ninguém pense que me refiro aos rebentos pensando na continuidade ou baboseiras afins; tais pormenores, como a extinção do nome familiar – apelido – ou o seu inverso, pouco me dizem. Mas as noites que passei aflita com as suas dores, o que sofri com o receio que tinham dos exames, o que trouxeram de novo e constante à minha vida enche-me de júbilo o coração (é mesmo isso, júbilo). Não. Os filhos não gostam de nós como nós deles, não imaginam quanto nos doem as suas palavras às vezes duras e outras apenas desleixadas. Querem ser eles. E como nós somos alegres de assim os ver.
E eu sei de fonte segura que o coração dos pais dilata e se torna poço sem fundo de amor. Que os nossos meninos nem espreitam, empenhados que estão em marcar o seu lugar, não raro o mais distante que conseguem.
Mas as meninas indianas são como as cadelinhas que levamos ao veterinário para esterilizar. Não são, não. Porque as nossas cadelas não morrem da esterilização, são operadas em clínicas, anestesiadas e tratadas a antibiótico e carinhos no pós-operatório. Gostamos delas. As meninas indianas não chegam à condição dos nossos animais domésticos. Porque morrem por estupidez e ausência de assepsia. Porque têm idade de brincar com bonecas e lhes retalham as entranhas. Porque a desumanidade singra neste mar de sargaço.

E isto, para mim, é Sodoma e Gomorra.

Sem comentários:

Enviar um comentário