quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Conversa Doce com o Meu Avô

Avô, se tu soubesses! Ao contrário da maioria das crianças não me lembro de querer crescer, crescer não teve sequer grande piada, mas estavas ali, a entalar-me uma notinha pequena nos bolsos, toda a ternura derramada no teu sorriso;  e era verdade que a nota não me fazia falta, que apanhava a carreira contigo no pensamento e me custava menos a partida se surgias inexplicável. Tanto te custava andar e nunca te senti aproximar da paragem. Por vezes penso se os outros netos terão de ti igual lembrança, se lhes guardavas o mesmo amor. Eras um coração grande, todos te gostávamos. Te gostamos. És um coração grande. Pergunto-me agora, numa quase certeza, era desculpa, não ias a nenhum outro lugar, ias propositado para ver-me partir, mansamente, no teu esforço de tudo, apoiado na bengala de tanto ano. No tempo de teres casa tua, chegavas do trabalho e deixavas o cajado à entrada da porta; ou eu to tirava e ia lá pô-lo sem arte, que caía de imediato. Corrigias-lhe o encosto com um pé calçado e outro descalço, a rir para mim, o avô ajuda. Era um pau grosso e leve, polido de uso, alguns nós salientes. Se perguntava a minha mãe, é um pau de quê, ela, não sei foi o avô que o arranjou; eu a recordar um santinho de S. José também com um pau na mão que floria lá em cima – era um bordão, mas eu não sabia - e a mãe na sua paciência, ou talvez para me calar, é um gamão, então eu segura, o cajado do avô é um gamão, não é?   A minha mãe, sim, chata. Eu, e porque é que não tem a flor? O avô cortou-a, não foi? E passeava contente a descoberta de o meu avô um cajado igual ao do santo. Não passeava só, contava a todas as minhas vizinhas de escola, o que me apunha logo uma certa aura de glória. Tinha imenso respeito pelo teu bordão mesmo que não florido e ofendia-me que a avó, aí não se mexe, como se eu fosse capaz de estragar alguma coisa tua por querer. Desculpa não dar pelas tuas pernas a pararem, a juventude pouco vê e inda hoje as coisas me passam. Mas nunca te faltou o infinito da minha alegria ao ver-te, a saudade que me levava onde estivesses, as balholhices que sempre te disse e gostavas de ouvir quando rias baixinho a sussurrar, esta neta, esta neta, e ficavas por ali. E tanto me dizia quem tão pouco falava.
Oh, mas comecei esta conversa para te contar que hoje comi a minha primeira filhós de Natal. Comemos nós dois. Pois foi. Grossa e polvilhada com muito açúcar como gostavas, lembras-te? Tive de sacudir o açúcar, mas tu tiravas torrões do açucareiro às escondidas da avó e sempre preferiste o doce, a diabetes a milhas, portanto, adoraste. Quando eu sabia fazer filhós, deixava um pouco de massa no alguidar para tender as tuas: mais grossas e com mais açúcar e canela. Depois levava-tas onde estivesses a desejar que as provasses logo para me confirmares o gosto. E fazias-me a vontade, a mastiga-las contente. Bem sei que a princípio eram meio desenxabidas, a boa vontade não faz tudo, e em coisas de filhós não é sequer o meio caminho andado, só a prática nos faz a mão (agora também já a perdi, vê tu). Mas tu comias uma e depois ficavas a partir bocadinhos pequenos e a dizer, assim é que é, não gosto daquelas filhós que as tuas tias fazem e parecem papel, a partirem-se todas nas mãos…e eu a inchar de contentamento.
Fazia-te bolos e depois só pudins, já que pouco mastigavas. Tens de me desculpar aquele pudim de ovos. A intenção era que gostasses demais. E para que ficasse melhor, em vez de uma casca de limão pus a casca do limão inteiro - ó santa inexperiência - e fui levar-to contente. Na verdade fomos nós quatro, a imaginar um pudim de sabor incrível. Sentei-me um bocadinho contigo, mas havia o jantar, e as galinhas e mais não sei quantos animais à espera antes de ser noite. Deixei ficar os meus irmãos para o lanche e rumei ao destino. Chegaram à noitinha e perguntei a uma das garotas, provaram o pudim? E elas, não, mas o avô e a tia comeram. Eu ansiosa, o que disseram? E a mais velha, a tia disse, hum… é bom é, sabe a cachola de porco. Eu a abismar da conversa, o quê?! A que é que sabe a cachola de porco?! E como é que a tia comparou um pudim que é doce com carne de porco.  Virei-me para ela, queres ver que o pudim estava estragado… E salta o meu irmão, o teu pudim sabia mal, até amargava, não gostei nada e olha quase ninguém comeu. A mais nova contristada, olhos no chão, eu provei um bocadinho e não prestava, mas não te queria dizer, ias tão contente com o pudim e estava tão bonito. Pois é avô, nem sempre é verdade que a intenção…
E olha, já que estou em maré de sinceridade, aquele bolo de bolacha de que gostavas muito, era barrado com a manteiga que tu não comias. A gente não te disse para não te envergonhar. Mas agora já podes saber.. Não acredito que nunca notaste o gosto da manteiga. Vá…admite, sabias, mas fingias que não e pronto. Eu para ti, avô mais uma fatia, e os teus olhos, pode ser. Ou quando era mais nova a minha mãe, amanhã o avô vem cá almoçar, eu, vou fazer o bolo de bolacha.
Por vezes carpinteiravas de lápis atrás da orelha e eu cirandava a teu lado que nem carraça a copiar-te o que podia. Mal te ajoelhavas numa medida mais exacta, tirava-te o lápis e tentava uma imitação, mas o pobre do lápis acabava-me dentro do ouvido, único lugar onde conseguia equilibrá-lo. Envaidecia no gesto, avô olhe, eu sei, não sei? E tu tiravas-mo com um beijo, dá cá, agora o lápis faz falta ao avô.  Nunca me disseste que não sabia, que estava mal, não te assustavas como a avó, tira lá o lápis à gaiata senão ainda acontece uma desgraça, tão parvo é o avô como a neta.
Olha, estás além do espelho e não te vejo; apenas te sei a presença, mas espero que estejam os dois, tu e a avó. Se tanta vida não vos separou, é assim que tem de ser na morte.

Um abracinho 

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