Avô,
se tu soubesses! Ao contrário da maioria das crianças não me lembro de querer
crescer, crescer não teve sequer grande piada, mas estavas ali, a entalar-me
uma notinha pequena nos bolsos, toda a ternura derramada no teu sorriso; e era verdade que a nota não me fazia falta,
que apanhava a carreira contigo no pensamento e me custava menos a partida se
surgias inexplicável. Tanto te custava andar e nunca te senti aproximar da
paragem. Por vezes penso se os outros netos terão de ti igual lembrança, se
lhes guardavas o mesmo amor. Eras um coração grande, todos te gostávamos. Te
gostamos. És um coração grande. Pergunto-me agora, numa quase certeza, era
desculpa, não ias a nenhum outro lugar, ias propositado para ver-me partir,
mansamente, no teu esforço de tudo, apoiado na bengala de tanto ano. No tempo de teres casa tua, chegavas do trabalho e deixavas o cajado à entrada da porta; ou eu to
tirava e ia lá pô-lo sem arte, que caía de imediato. Corrigias-lhe o encosto
com um pé calçado e outro descalço, a rir para mim, o avô ajuda. Era um pau
grosso e leve, polido de uso, alguns nós salientes. Se perguntava a minha mãe,
é um pau de quê, ela, não sei foi o avô que o arranjou; eu a recordar um
santinho de S. José também com um pau na mão que floria lá em cima – era um
bordão, mas eu não sabia - e a mãe na sua paciência, ou talvez para me calar, é
um gamão, então eu segura, o cajado do avô é um gamão, não é? A minha
mãe, sim, chata. Eu, e porque é que não tem a flor? O avô cortou-a, não foi? E
passeava contente a descoberta de o meu avô um cajado igual ao do santo. Não
passeava só, contava a todas as minhas vizinhas de escola, o que me apunha logo
uma certa aura de glória. Tinha imenso respeito pelo teu bordão mesmo que
não florido e ofendia-me que a avó, aí não se mexe, como se eu fosse capaz de
estragar alguma coisa tua por querer. Desculpa não dar pelas tuas pernas a
pararem, a juventude pouco vê e inda hoje as coisas me passam. Mas nunca te
faltou o infinito da minha alegria ao ver-te, a saudade que me levava onde
estivesses, as balholhices que sempre te disse e gostavas de ouvir quando rias
baixinho a sussurrar, esta neta, esta neta, e ficavas por ali. E tanto me dizia
quem tão pouco falava.
Oh,
mas comecei esta conversa para te contar que hoje comi a minha primeira filhós
de Natal. Comemos nós dois. Pois foi. Grossa e polvilhada com muito açúcar como
gostavas, lembras-te? Tive de sacudir o açúcar, mas tu tiravas torrões do
açucareiro às escondidas da avó e sempre preferiste o doce, a diabetes a milhas,
portanto, adoraste. Quando eu sabia fazer filhós, deixava um pouco de massa no
alguidar para tender as tuas: mais grossas e com mais açúcar e canela. Depois
levava-tas onde estivesses a desejar que as provasses logo para me confirmares
o gosto. E fazias-me a vontade, a mastiga-las contente. Bem sei que a princípio
eram meio desenxabidas, a boa vontade não faz tudo, e em coisas de filhós não é
sequer o meio caminho andado, só a prática nos faz a mão (agora também já a
perdi, vê tu). Mas tu comias uma e depois ficavas a partir bocadinhos pequenos
e a dizer, assim é que é, não gosto daquelas filhós que as tuas tias fazem e
parecem papel, a partirem-se todas nas mãos…e eu a inchar de contentamento.
Fazia-te
bolos e depois só pudins, já que pouco mastigavas. Tens de me desculpar aquele
pudim de ovos. A intenção era que gostasses demais. E para que ficasse melhor,
em vez de uma casca de limão pus a casca do limão inteiro - ó santa
inexperiência - e fui levar-to contente. Na verdade fomos nós quatro, a imaginar
um pudim de sabor incrível. Sentei-me um bocadinho contigo, mas havia o jantar,
e as galinhas e mais não sei quantos animais à espera antes de ser noite.
Deixei ficar os meus irmãos para o lanche e rumei ao destino. Chegaram à
noitinha e perguntei a uma das garotas, provaram o pudim? E elas, não, mas o
avô e a tia comeram. Eu ansiosa, o que disseram? E a mais velha, a tia disse,
hum… é bom é, sabe a cachola de porco. Eu a abismar da conversa, o quê?! A que
é que sabe a cachola de porco?! E como é que a tia comparou um pudim que é doce
com carne de porco. Virei-me para ela,
queres ver que o pudim estava estragado… E salta o meu irmão, o teu pudim sabia
mal, até amargava, não gostei nada e olha quase ninguém comeu. A mais nova
contristada, olhos no chão, eu provei um bocadinho e não prestava, mas não te
queria dizer, ias tão contente com o pudim e estava tão bonito. Pois é avô, nem
sempre é verdade que a intenção…
E
olha, já que estou em maré de sinceridade, aquele bolo de bolacha de que gostavas
muito, era barrado com a manteiga que tu não comias. A gente não te disse para
não te envergonhar. Mas agora já podes saber.. Não acredito que nunca notaste o
gosto da manteiga. Vá…admite, sabias, mas fingias que não e pronto. Eu para ti,
avô mais uma fatia, e os teus olhos, pode ser. Ou quando era mais nova a minha
mãe, amanhã o avô vem cá almoçar, eu, vou fazer o bolo de bolacha.
Por
vezes carpinteiravas de lápis atrás da orelha e eu cirandava a teu lado que nem
carraça a copiar-te o que podia. Mal te ajoelhavas numa medida mais exacta,
tirava-te o lápis e tentava uma imitação, mas o pobre do lápis acabava-me
dentro do ouvido, único lugar onde conseguia equilibrá-lo. Envaidecia no gesto,
avô olhe, eu sei, não sei? E tu tiravas-mo com um beijo, dá cá, agora o lápis
faz falta ao avô. Nunca me disseste que
não sabia, que estava mal, não te assustavas como a avó, tira lá o lápis à
gaiata senão ainda acontece uma desgraça, tão parvo é o avô como a neta.
Olha,
estás além do espelho e não te vejo; apenas te sei a presença, mas espero que
estejam os dois, tu e a avó. Se tanta vida não vos separou, é assim que tem de ser na
morte.
Um
abracinho
Sem comentários:
Enviar um comentário