terça-feira, 4 de novembro de 2014

Para Lá do Mar


Logo que nos sentámos no  lugar e acabidámos as barbatanas abelhudas, o meu saquinho de compras perdido dentro da mala, a reclamar numa vozinha pequena, também quero ver, tirem-me se faz favor, e nós duas a fazermo-nos surdas, empenhadas em calendarizar a data do nosso Dia Um. Alheia ao esforço da locomotiva que transpirava nuvens de diesel, ela, como se minha mãe ou tutora, quando sou a mais velha das duas, a decidir, toda ponderação, vamos a x que é a primeira praia, mas só depois de almoço; se te sentires mal, estamos perto da cidade e levamos-te ao hospital. Não te preocupes, vai correr tudo bem; precisas do ar do mar, estás muito amarelinha.
Mal cheguei a casa, experimentei a compra e achei-me linda de biquíni: à parte o embaciado doentio da pele, a magreza que vestida me tirava graça, aparecia agora graciosa. Pensei que bem podíamos  passar a vida de biquíni. Mas logo emendei o desejo a lembrar-me que tropeço em tudo e passo a vida cheia de nódoas negras. Se sempre em biquíni, ia-me desgraçar em todo o ângulo agudo, estatelar-me ao comprido até nos ângulos rasos, e sabe-se lá que mais da geometria que não me convém.
 Na data aprazada, o mar decerto se riu de nós. De mim, seguramente. Éramos quatro, ela e um amigo mais jovem, eu e a mãe dela. A pé. Até x, que eu não sabia onde era. Iríamos a meio do caminho e a minha amiga cortante, ó mãe, tu trazes duas malas para quê? Só então notei a senhora, uma mala de mão em cada braço. A minha amiga a azedar, mas por que é que tu vens assim para a praia, para que queres tu duas malas?! Desconhecia-lhe o lado áspero e pareceu-me mal tanta erva azeda para cima da pobre senhora entretanto parada no caminho, as malas de súbito uns trambolhos. mas não acrescentei, receando aumentar-lhe o embaraço. Afinal, tínhamos acabado de nos conhecer e ela gaguejava justificações numa atrapalhação de dar dó, os óculos em escorrega para o nariz, olhos de pássaro sem ninho, mãos aflitas a titubear gestos, vim ao médico, uma mala tem os papéis do médico e a outra é a da carteira… Mas a juventude impiedosa, olha para ti, mãe. Já viste bem a tua figura, já? A senhora, ó filha, desculpa, mas agora tenho de carregar com elas, trouxe-as…. E virou-me a fatalidade por detrás das bifocais, a boca entretida a contar o que trazia numa e noutra. A minha amiga adiantou-se com o jovem e eu a atrasar o passo para lhe acompanhar a mãe que seguia em balanço de navio, a menina assim a menina assado, desditando-se. A claridade feria no calor da tarde e junto ao asfalto o calor  subia em ondas, encaracolava. E o grupo pesado, lento, eu a pensar, se voltasse para trás, a apontar o incómodo de cabeça, que ideia a dela, para que trouxe o amigo. O à vontade a sumir, eu para ele, então…, mas ele chauzinho, tens de te arranjar sem mim. E eu, mau…e agora?! E de repente a minha amiga a sorrir, olhem, é já aqui. E começou a descer para a calma do imenso azul rumorejante. Ou o que me parecia, porque efectivamente ficou-se pela areia. Seguimos atrás deles por uma vereda arenosa e estreita,  os pés da senhora assustadiços, não me aguento no plano inclinado, a areia escorrega demais, socorro. Então, a filha mostrou o lado que eu conhecia e veio ter connosco. Estendeu as mãos à mãe e amparou-a até ao fim da vereda indicando-lhe onde e como pousar os pés, eles gratos, ai muito obrigadinho, estava a ver que não éramos capazes de chegar cá abaixo. E já eles em fato de banho, barbatanas prontas a entrar em acção. Então, a mãe veio vindo devagar pelo areal e sentou a sua exaustão junto de nós. Depois, pousou as malas e deitou as meias abaixo para dar descanso à brancura de pernas siamesas enquanto limpava as lentes suadas. Aquele gesto de cansaço despretensioso chamou por mim. Enchi-me de coragem e despi-me como se fosse a coisa mais natural do mundo, apesar dos meus dedos enleados nos botões, das roupas a pegarem-se-me às mãos, eu a achar-lhes um volume desusado, o que é que faço a isto agora, enquanto, pronta para a cópia, observava pelo canto do olho os meus dois modelos.
Nem nas orais dos meus exames suei tanto como naquela tarde em que não me lembro se me virei na toalha. Mas aguentei-me. Foi um amor cigano: de princípio atribulado.


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