quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Para lá do Mar

(continuação)
Naquele fim-de-semana o assunto foi a tenda. Falei das espias como se as conhecesse de longa data e estivesse habituadíssima a espetá-las na terra; da qualidade da lona azul forte do chão, impermeável a mais não poder; do azul diáfano do sobretecto; da descoberta que entretanto fizera de que os varões metálicos eram de encaixar – nunca tinha visto uma coisa daquelas – e que só a frente da tenda era laranja, ou seja, lá dentro, quando acordados, os olhos só viam azul (fazia toda a diferença ver azul ou ver laranja, podem crer). Uma maravilha. Não faço ideia das vicissitudes que povoaram o imaginário dos meus irmãos face às minhas empoladas descrições, mas esperançávamos todos a desejo do nosso primeiro feriado de Primavera, o dia 25 de Abril, quinta-feira. Ora o governo – belos tempos – concedera a ponte de sexta-feira. De modo que, na posse de quatro dias, começámos a combinar onde estrear as tendas. Cabendo-me a factura, o meu pai ouvia sem retorquir.
Dado o meu estado virginal em águas salgadas e costa portuguesa em geral, foi ponto de honra para a minha amiga iniciar a aventura campista numa praia bonita. Acenei um consentimento. Escolheu a Arrábida que me era estrangeira por inteiro, mas anuí de olhos fechados, a confiar no rigor do gosto. O ponto de encontro seria Setúbal. Nós duas iríamos de comboio e depois, já na estação de camionagem que ainda era dos Belos, esperávamos os meus dois irmãos mais novos que vinham de casa pela primeira vez sozinhos, o que me inquietava ligeiramente. A minha outra irmã e o nosso amigo também ali desaguavam. E depois, Arrábida! De autocarro. Claro que verificámos precisar de um fogão e um candeeiro que resolvemos adquirir no final de mês, cabendo a cada uma seu utensílio.
Depois, marcou-se o fim-de-semana de experiência para a montagem da tenda, ela de olho na  proximidade de um eucaliptal. Nesse domingo  – estávamos hospedadas juntas –, eu em ânsias para saber se estava tudo, se ele sabia mesmo como era, e etc. Mal poisou as malas, cravejei perguntas como quem pendura quadros a eito. Ela a tirar os óculos de sol, descansadamente, ó pá, ele está encantado, diz que é fácil e em dez minutos monta-a; experimentámos no quintal que não deu para ir aos eucaliptos e fizemos tudo, só não enterrámos as espias por ser acimentado. Virando-se para mim num êxtase sorridente, é que são mesmo bonitas as nossas tendas. Não te preocupes, tá tudo bem, ele vai levar um martelo para bater as espias, pode fazer vento ou assim, percebes…
Também eu vivia de enlevo. A única coisa que possuíra era uma viola que me custara anos de poupança e uma prenda da irmã directora dentro de um envelope e que me apressei a partir na primeira semana em que me existiu e nem o tempo dos meus dedos a treinar acordes. Portanto, comprar uma casita de pano azul-laranja com uma janelinha, que podia carregar debaixo do braço (não era bem assim, tínhamos que ser duas e ela deitada entre nós), era a coisa mais estrambólica e maravilhosa que podia acontecer-me aos vinte e um anos. Ainda que a casa de pano, acho que me sentia um dos três porquinhos, quer dizer, o mais velho e assisado. Mas as minhas histórias, como já devem ter entendido, não têm lobos. Se têm, são uns amores de boca grande e que não andam por aí a engolir tudo que lhes aparece ou ainda lhes dá uma diarreia das compridas. Os meus lobos são bons e cuidadosos. Uns doces animais.
            Depois, e à medida que o 25 de Abril se aproximava, acertámos panelas e tachos, toalhas e fatos de banho. Dispensei-me de pensar em roupas, sacos cama que eu ainda nem sabia o que fossem e friúra nocturna. No meu imaginário, cujo modelo eram os livros dos cinco, passávamos o tempo a chapinhar em fato de banho e durante a noite dormíamos muito quentinhos e sem o Tim, que não seria necessário. À época, o povo português andava contente, éramos todos amigos uns dos outros e não havia ladrões.

E a minha perene e quase ilimitada confiança no próximo, aliada a uma  juvenil inconsciência, desanuviou o resto.

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