(continuação)
Naquele
fim-de-semana o assunto foi a tenda. Falei das espias como se as conhecesse de
longa data e estivesse habituadíssima a espetá-las na terra; da qualidade da
lona azul forte do chão, impermeável a mais não poder; do azul diáfano do sobretecto;
da descoberta que entretanto fizera de que os varões metálicos eram de encaixar
– nunca tinha visto uma coisa daquelas – e que só a frente da tenda era
laranja, ou seja, lá dentro, quando acordados, os olhos só viam azul (fazia
toda a diferença ver azul ou ver laranja, podem crer). Uma maravilha. Não faço
ideia das vicissitudes que povoaram o imaginário dos meus irmãos face às minhas
empoladas descrições, mas esperançávamos todos a desejo do nosso primeiro
feriado de Primavera, o dia 25 de Abril, quinta-feira. Ora o governo – belos
tempos – concedera a ponte de sexta-feira. De modo que, na posse de quatro
dias, começámos a combinar onde estrear as tendas. Cabendo-me a factura, o meu pai
ouvia sem retorquir.
Dado
o meu estado virginal em águas salgadas e costa portuguesa em geral, foi ponto
de honra para a minha amiga iniciar a aventura campista numa praia bonita. Acenei
um consentimento. Escolheu a Arrábida que me era estrangeira por inteiro, mas anuí
de olhos fechados, a confiar no rigor do gosto. O ponto de encontro seria
Setúbal. Nós duas iríamos de comboio e depois, já na estação de camionagem que
ainda era dos Belos, esperávamos os meus dois irmãos mais novos que vinham de
casa pela primeira vez sozinhos, o que me inquietava ligeiramente. A minha
outra irmã e o nosso amigo também ali desaguavam. E
depois, Arrábida! De autocarro. Claro que verificámos precisar de um fogão e um
candeeiro que resolvemos adquirir no final de mês, cabendo a cada uma seu
utensílio.
Depois,
marcou-se o fim-de-semana de experiência para a montagem da tenda, ela de olho
na proximidade de um eucaliptal. Nesse
domingo – estávamos hospedadas juntas –,
eu em ânsias para saber se estava tudo, se ele sabia mesmo como era, e etc. Mal
poisou as malas, cravejei perguntas como quem pendura quadros a eito. Ela a
tirar os óculos de sol, descansadamente, ó pá, ele está encantado, diz que é
fácil e em dez minutos monta-a; experimentámos no quintal que não deu para ir
aos eucaliptos e fizemos tudo, só não enterrámos as espias por ser acimentado. Virando-se
para mim num êxtase sorridente, é que são mesmo bonitas as nossas tendas. Não
te preocupes, tá tudo bem, ele vai levar um martelo para bater as espias, pode
fazer vento ou assim, percebes…
Também
eu vivia de enlevo. A única coisa que possuíra era uma viola que me custara
anos de poupança e uma prenda da irmã directora dentro de um envelope e que me
apressei a partir na primeira semana em que me existiu e nem o tempo dos meus
dedos a treinar acordes. Portanto, comprar uma casita de pano azul-laranja com
uma janelinha, que podia carregar debaixo do braço (não era bem assim, tínhamos
que ser duas e ela deitada entre nós), era a coisa mais estrambólica e
maravilhosa que podia acontecer-me aos vinte e um anos. Ainda que a casa de
pano, acho que me sentia um dos três porquinhos, quer dizer, o mais velho e
assisado. Mas as minhas histórias, como já devem ter entendido, não têm lobos.
Se têm, são uns amores de boca grande e que não andam por aí a engolir tudo que
lhes aparece ou ainda lhes dá uma diarreia das compridas. Os meus lobos são
bons e cuidadosos. Uns doces animais.
Depois, e à medida que o 25 de Abril
se aproximava, acertámos panelas e tachos, toalhas e fatos de banho.
Dispensei-me de pensar em roupas, sacos cama que eu ainda nem sabia o que fossem
e friúra nocturna. No meu imaginário, cujo modelo eram os livros dos cinco, passávamos
o tempo a chapinhar em fato de banho e durante a noite dormíamos muito
quentinhos e sem o Tim, que não seria necessário. À época, o povo português andava
contente, éramos todos amigos uns dos outros e não havia ladrões.
E a
minha perene e quase ilimitada confiança no próximo, aliada a uma juvenil inconsciência, desanuviou o resto.
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