quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Pesos Insustentáveis

No fim de uma estrada a descer em caracol, plantado a meio de um terreiro de árvores, sua majestade o hotel a impor-nos a  brancura elegante e discreta dos seus dois pisos austeros. Tem uma traça de recantos que lembra coroas e grandes senhores, olhos empertigados e  longilíneos a toda a volta, sublinhados de pequenos frisos e gradeamentos verdes. Se o olhamos com atenção, as linhas puras em traço recto  dominam o conjunto e apenas em algumas janelas uma ogiva pequena. Guardou tropas na época das invasões francesas e é compreensível o rigor despojado e militar da sua traça arquitectónica. Diferente de tudo o resto, mas enquadrado na paisagem. Puro acontecer de si, ergue a sua linhagem sem ostentação. No interior (será ainda o mesmo?), uma certa velhice camuflada, aqui e ali ainda o brilho da qualidade. O bom gosto. Contudo, o chão dos quartos em linóleo a apoquentar-nos os pés, canalizações gorgolejando desditas paredes fora a impedir-nos o recreio do pensamento, casas de banho só parcialmente remodeladas. E nem sempre é possível escutar o silêncio que a noite traz no ventre.
Este ano não resisti a espreitá-lo. Na aparência o mesmo. Igual. Como se os anos não signifiquem na cal e no vidro e o granito de portas e janelas uma santa Bárbara das intempéries. Não me reconheceu. Eu a rodeá-lo a toda a volta e ele, não sei quem é, são passos novos. Entrou-me um  desgosto fininho, um frio de alma, pois tu não recordas as horas paradas na janela a olhar a copa das árvores; não tiveste saudade dos meus olhos líquidos a escorrer-te paredes abaixo, nem da tristeza que me cavalga por vezes sem licença quando toda me pergunto sem me saber, este braço serve para quê, eu para que sirvo e quem é isto a que chamo eu e não existe, caramba. E ele num sopro de vento nos áceres das traseiras, que os da frente estão ocupados em não deixar cair folhas outoniças sobre automóveis de estirpe, desculpe mas não sei quem é. E num remoque, a desviar conversa, deve estar a fazer confusão, não aceitamos quem não sabe quem é. Já viu a frota automóvel dos hóspedes? Ponha ali os olhos. E isolou. Embrulhou-se num manto de outono a despedir folhas lanceoladas a amarelar por tudo quanto era sítio, acendeu luzes exteriores e interiores que é como quem diz, despediu-me, porta aberta, faz favor, passe bem.
Doem-me estas coisas das casas a despedirem-me sem mais. Mas acontece, nem todas me recebem. Ainda julguei ser um amuo. Quem sabe ouvira das árvores que este ano mudei de poiso. Que as árvores têm longas conversas sussurradas e sabem tudo de nós, a largura dos troncos nasce do esforço para aguentar o tanto que guardam. A alegria mais leve, sim, mas também conta no peso. A dor humana pesa arrobas e o desgosto que se arrasta molemente na seiva, peganhento, viscoso, mói mais que uma enxadada à raiz. Só elas sabem o mistério da dor que devém folhas, flores e frutos. Esta é a verdadeira história das árvores que a noite em silêncio disfarça de susto e habitação de duendes que silvam desgraças de vento. Mas não. É tão somente a nossa voz calada, enraizada de anos e estações a perpassar. A Voz de todos os homens. Sem tempo ou diferença.  Enquanto a noite vela sobre o mundo, as árvores relampejam o eterno. E nelas te hei-de encontrar sempre.

Regressei devagar ao meu sítio, tentando não desmanchar a canção das folhas a rolar sobre si e a terra. Tão bonito surpreender o outono desgovernado! Deitei um olhar displicente ao parque automóvel do hotel. E as folhas numa queixa, quem me dera um vento de liberdade, mandava os cadillacs logo a um sítio. Olhei os meus pés solados e sorri: a vida não é igual par todos.

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