No
fim de uma estrada a descer em caracol, plantado a meio de um terreiro de árvores,
sua majestade o hotel a impor-nos a brancura
elegante e discreta dos seus dois pisos austeros. Tem uma traça de recantos que
lembra coroas e grandes senhores, olhos empertigados e longilíneos a toda a volta, sublinhados de pequenos frisos e
gradeamentos verdes. Se o olhamos com atenção, as linhas puras em traço recto dominam o conjunto e apenas em algumas janelas
uma ogiva pequena. Guardou tropas na época das invasões francesas e é
compreensível o rigor despojado e militar da sua traça arquitectónica. Diferente
de tudo o resto, mas enquadrado na paisagem. Puro acontecer de si, ergue a sua linhagem sem
ostentação. No interior (será ainda o mesmo?), uma
certa velhice camuflada, aqui e ali ainda o brilho da qualidade. O bom gosto. Contudo,
o chão dos quartos em linóleo a apoquentar-nos os pés, canalizações gorgolejando
desditas paredes fora a impedir-nos o recreio do pensamento, casas de banho só
parcialmente remodeladas. E nem sempre é possível escutar o silêncio que a
noite traz no ventre.
Este
ano não resisti a espreitá-lo. Na aparência o mesmo. Igual. Como se os anos não
signifiquem na cal e no vidro e o granito de portas e janelas uma santa Bárbara
das intempéries. Não me reconheceu. Eu a rodeá-lo a toda a volta e ele, não sei
quem é, são passos novos. Entrou-me um desgosto
fininho, um frio de alma, pois tu não recordas as horas paradas na janela a
olhar a copa das árvores; não tiveste saudade dos meus olhos líquidos a
escorrer-te paredes abaixo, nem da tristeza que me cavalga por vezes sem
licença quando toda me pergunto sem me saber, este braço serve para quê, eu para
que sirvo e quem é isto a que chamo eu e não existe, caramba. E ele num sopro
de vento nos áceres das traseiras, que os da frente estão ocupados em não deixar
cair folhas outoniças sobre automóveis de estirpe, desculpe mas não sei quem é.
E num remoque, a desviar conversa, deve estar a fazer confusão, não aceitamos
quem não sabe quem é. Já viu a frota automóvel dos hóspedes? Ponha ali os
olhos. E isolou. Embrulhou-se num manto de outono a despedir folhas lanceoladas
a amarelar por tudo quanto era sítio, acendeu luzes exteriores e interiores que
é como quem diz, despediu-me, porta aberta, faz favor, passe bem.
Doem-me
estas coisas das casas a despedirem-me sem mais. Mas acontece, nem todas me
recebem. Ainda julguei ser um amuo. Quem sabe ouvira das árvores que este ano
mudei de poiso. Que as árvores têm longas conversas sussurradas e sabem tudo de
nós, a largura dos troncos nasce do esforço para aguentar o tanto que guardam. A
alegria mais leve, sim, mas também conta no peso. A dor humana pesa arrobas e o
desgosto que se arrasta molemente na seiva, peganhento, viscoso, mói mais que
uma enxadada à raiz. Só elas sabem o mistério da dor que devém folhas, flores e
frutos. Esta é a verdadeira história das árvores que a noite em silêncio disfarça de susto e habitação de duendes que silvam desgraças de vento. Mas não.
É tão somente a nossa voz calada, enraizada de anos e estações a perpassar. A Voz de todos os homens. Sem tempo ou diferença. Enquanto a noite vela sobre o mundo, as árvores relampejam o eterno. E nelas te hei-de encontrar sempre.
Regressei
devagar ao meu sítio, tentando não desmanchar a canção das folhas a rolar sobre si e a terra. Tão bonito surpreender o outono desgovernado! Deitei um olhar
displicente ao parque automóvel do hotel. E as folhas numa queixa, quem
me dera um vento de liberdade, mandava os cadillacs logo a um sítio. Olhei os
meus pés solados e sorri: a vida não é igual par todos.
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