Pégaso.
Gosto deste cavalo desde os treze anos, quando a professora de história me
falou dele. D. Maria do Céu usava óculos redondos e chamávamos-lhe “a biotex”.
Ninguém gostava daquela professora que gastava parte das aulas a mandar
sublinhar os livros. Ninguém excepto eu que também era alguém. Ela para mim, a
propósito da continuação dos estudos, “dá Deus nozes a quem não tem dentes” e
eu sem entender que era um provérbio, nem se eu tinha as nozes ou tinha os
dentes ou se aquilo não tinha nada a ver comigo. Pedi-lhe que repetisse e ela
fez-me o agrado a bater as pestanas encompridadas com rímel e um traço negro
sobre os olhos que tento imitar mas fica sem jeito nenhum, que pelo menos num
olho está sempre torto e a vontade de hoje lhe perguntar, D. Maria do Céu como
é que se acerta um olho com o outro.
No
entanto, alguém me disse que a senhora deixou o marido, descasou do ex senhor
presidente da Câmara da minha terra. De modos que a D. Maria do Céu hoje só
Maria do Céu porque o nome do marido também o jogou fora, quero lá saber do teu
nome para alguma coisa, pensas que és importante só por seres presidente duma
vila simplória onde detestei viver, tanta hora, tanto minuto naquele lugarejo,
santo Deus como o tempo pode ser lento. De modos que vive sozinha num andar em
Lisboa, o filho já casado. Quem sabe se ela com as mãos a tremer da idade e os
olhos sem riscos nem pálpebras azuis claras que faziam a inveja de toda a gente,
mesmo das senhoras da igreja que usavam banana e pintavam os lábios ao domingo para a missa, e se desagradavam publicamente
do cabelo à Malvina num tempo em que a Malvina de cueiros. Elas num esgar
para a franjinha que lhe bordava os olhos ou escorria um nadinha para as lentes
redondinhas que nem Ós maiúsculos, tché! Olha bem para aquilo, não tem mesmo
gracinha nenhuma.
Mas,
quanto mais desfeiteavam a D. Maria do Céu, mais eu gostava dela. É que amava
tudo que os outros desgostavam. Assim mesmo. O meu pai se a via no jornal –
vinha sempre em todos os jornais que o senhor presidente era careca e mais baixo que ela e
gostava de mostrar a mulher - , tem umas pernas piores que as da nossa mesa da
cozinha, mas o meu pai era suspeito, porque dizia que uma mulher sem cabelos
nas pernas não tinha encanto, e por isso sempre desconfiei dos seus critérios
de beleza. Eu ouvia aquela obscenidade a soar-me a grossa asneira e ficava
possessa, mas fui educada a não contradizer o chefe de família, coisa que
parece que até aprendi muito mal porque na juventude me passei dos carretos
vezes sem conta e lhe gritei as revoltas todas da infância, os deslargue-me do
Lobo Antunes tinha-os eu todos atravessados e alguns disparei-os com tanto
ânimo que abriram buraco na porta da cozinha. Ainda lá estão as marcas, quem
quiser pode ir confirmar.
Pronto,
mas eu vinha para falar de Pégaso o cavalo alado que fez o meu imaginário a partir
dos treze. Não que tenha visto algum desenho do animal, alguma pintura,
nada. A professora apenas disse que era um cavalo com asas. Achei magnificente.
Pégaso. Palavra mais bonita! Foi bem mais tarde que descobri a mitologia grega
e rejubilei, lá estava Pégaso o cavalo alado. E a comparação ao imaginário. Mas
eu o gostara por ter asas sendo apenas e só um cavalo, eu a perguntar à
professora, existiu mesmo? E ela, que é que tu achas, eu a dilatar numa certeza
absurda, acho que pode ter existido. E ela a rir – a turma a rir -, não há
cavalos com asas. E eu para dentro, quero lá saber, para mim há e pronto.
Pégaso é o único cavalo que monto, que sou doente das costas e não me dou com
solavancos. Mas Pégaso voa e é com ele que ainda hoje venço os caminhos. Os
ínvios caminhos do Senhor. Pronto, já custo um bocado a subir, mas se consigo,
damos umas voltinhas bem boas. O que gosto deste cavalo não tem nome nem
palavra.
Certa vez, num dos tais caminhos ínvios com que o Senhor nos presenteia, por
sinal um dos bons, uma via larga onde perdi a bagagem, mas isso não conta, pois
ali, no alto esquinado de um edifício público, um museu, vá, o meu Pégaso e eu novinha
e de folha a alimentá-lo, um rabo de cavalo às três pancadas e as saias
compridas que tanto me agradavam na época do tal rabo de cavalo. Parei
parvamente no meio do caminho e logo as gentes me tropeçaram na figura porque
eu de nariz na esquina, hipnotizada. Eles a desculparem-se em linguagem
desconhecida, julgo que a desculparem-se mas pode ter sido a chamar-me nomes feios
que escuso de estar aqui a alvitrar, isto é um texto para ser lido por pessoas
com mais de seis anos de idade e não é com menos porque a malta abaixo não costuma saber ler. Sorri-lhes num intervalo da contemplação e
arredei-me para o lado a pensar que não levara a máquina fotográfica porque se
pagava mais e às vezes sou um bocadinho parva com preços, mas recusei entrar no
museu antes da foto tirada. Fui buscar um amigo que gosta de fotografar e
andava a surpreender instantâneos por ali, eu a apontar no rebordo do telhado as figurinhas airosas, por favor, fotografa-mos, please, please. Ele
olhou-me como quem não entende a importância, disse, aquele é o Pégaso, e clic, fez-me
a vontade. Delirei de contente, mas só
do lado do forro, por fora normalzinha.
Não
sei se Pégaso tem segundo nome. Estou capaz de usar o apelido do Pégaso e infringir
a minha regra: nunca usarei o nome de um homem. Ah! Cabeça a minha, não infrinjo
nada, não me proibi de usar o apelido de um cavalo!:)) Tá feito e não mexe
mais.
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