terça-feira, 11 de novembro de 2014

Pégaso

Pégaso. Gosto deste cavalo desde os treze anos, quando a professora de história me falou dele. D. Maria do Céu usava óculos redondos e chamávamos-lhe “a biotex”. Ninguém gostava daquela professora que gastava parte das aulas a mandar sublinhar os livros. Ninguém excepto eu que também era alguém. Ela para mim, a propósito da continuação dos estudos, “dá Deus nozes a quem não tem dentes” e eu sem entender que era um provérbio, nem se eu tinha as nozes ou tinha os dentes ou se aquilo não tinha nada a ver comigo. Pedi-lhe que repetisse e ela fez-me o agrado a bater as pestanas encompridadas com rímel e um traço negro sobre os olhos que tento imitar mas fica sem jeito nenhum, que pelo menos num olho está sempre torto e a vontade de hoje lhe perguntar, D. Maria do Céu como é que se acerta um olho com o outro.
No entanto, alguém me disse que a senhora deixou o marido, descasou do ex senhor presidente da Câmara da minha terra. De modos que a D. Maria do Céu hoje só Maria do Céu porque o nome do marido também o jogou fora, quero lá saber do teu nome para alguma coisa, pensas que és importante só por seres presidente duma vila simplória onde detestei viver, tanta hora, tanto minuto naquele lugarejo, santo Deus como o tempo pode ser lento. De modos que vive sozinha num andar em Lisboa, o filho já casado. Quem sabe se ela com as mãos a tremer da idade e os olhos sem riscos nem pálpebras azuis claras que faziam a inveja de toda a gente, mesmo das senhoras da igreja que usavam banana e pintavam os lábios ao domingo para a missa, e se desagradavam publicamente do cabelo à Malvina num tempo em que a Malvina de cueiros. Elas num esgar para a franjinha que lhe bordava os olhos ou escorria um nadinha para as lentes redondinhas que nem Ós maiúsculos, tché! Olha bem para aquilo, não tem mesmo gracinha nenhuma.
            Mas, quanto mais desfeiteavam a D. Maria do Céu, mais eu gostava dela. É que amava tudo que os outros desgostavam. Assim mesmo. O meu pai se a via no jornal – vinha sempre em todos os jornais que o senhor  presidente era careca e mais baixo que ela e gostava de mostrar a mulher - , tem umas pernas piores que as da nossa mesa da cozinha, mas o meu pai era suspeito, porque dizia que uma mulher sem cabelos nas pernas não tinha encanto, e por isso sempre desconfiei dos seus critérios de beleza. Eu ouvia aquela obscenidade a soar-me a grossa asneira e ficava possessa, mas fui educada a não contradizer o chefe de família, coisa que parece que até aprendi muito mal porque na juventude me passei dos carretos vezes sem conta e lhe gritei as revoltas todas da infância, os deslargue-me do Lobo Antunes tinha-os eu todos atravessados e alguns disparei-os com tanto ânimo que abriram buraco na porta da cozinha. Ainda lá estão as marcas, quem quiser pode ir confirmar.
Pronto, mas eu vinha para falar de Pégaso o cavalo alado que fez o meu imaginário a partir dos treze. Não que tenha visto algum desenho do animal, alguma pintura, nada. A professora apenas disse que era um cavalo com asas. Achei magnificente. Pégaso. Palavra mais bonita! Foi bem mais tarde que descobri a mitologia grega e rejubilei, lá estava Pégaso o cavalo alado. E a comparação ao imaginário. Mas eu o gostara por ter asas sendo apenas e só um cavalo, eu a perguntar à professora, existiu mesmo? E ela, que é que tu achas, eu a dilatar numa certeza absurda, acho que pode ter existido. E ela a rir – a turma a rir -, não há cavalos com asas. E eu para dentro, quero lá saber, para mim há e pronto. Pégaso é o único cavalo que monto, que sou doente das costas e não me dou com solavancos. Mas Pégaso voa e é com ele que ainda hoje venço os caminhos. Os ínvios caminhos do Senhor. Pronto, já custo um bocado a subir, mas se consigo, damos umas voltinhas bem boas. O que gosto deste cavalo não tem nome nem palavra.
Certa vez, num dos tais caminhos ínvios com que o Senhor nos presenteia, por sinal um dos bons, uma via larga onde perdi a bagagem, mas isso não conta, pois ali, no alto esquinado de um edifício público, um museu, vá, o meu Pégaso e eu novinha e de folha a alimentá-lo, um rabo de cavalo às três pancadas e as saias compridas que tanto me agradavam na época do tal rabo de cavalo. Parei parvamente no meio do caminho e logo as gentes me tropeçaram na figura porque eu de nariz na esquina, hipnotizada. Eles a desculparem-se em linguagem desconhecida, julgo que a desculparem-se mas pode ter sido a chamar-me nomes feios que escuso de estar aqui a alvitrar, isto é um texto para ser lido por pessoas com mais de seis anos de idade e não é com menos porque a malta abaixo não costuma saber ler. Sorri-lhes num intervalo da contemplação e arredei-me para o lado a pensar que   não levara a máquina fotográfica porque se pagava mais e às vezes sou um bocadinho parva com preços, mas recusei entrar no museu antes da foto tirada. Fui buscar um amigo que gosta de fotografar e andava a surpreender instantâneos por ali, eu a apontar no rebordo do telhado as figurinhas airosas, por favor, fotografa-mos, please, please. Ele olhou-me como quem não entende a importância, disse, aquele é o Pégaso, e clic, fez-me a vontade.  Delirei de contente, mas só do lado do forro, por fora normalzinha.

Não sei se Pégaso tem segundo nome. Estou capaz de usar o apelido do Pégaso e infringir a minha regra: nunca usarei o nome de um homem. Ah! Cabeça a minha, não infrinjo nada, não me proibi de usar o apelido de um cavalo!:)) Tá feito e não mexe mais.

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