segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Sem Paisagem

Alguém me aconselhou uma vez, depois de fortuitamente me ler, “põe paisagem”. Fui a correr ler-me, investigar se era verdade que me faltava paisagem, que era claustrofóbica, encerrada nas pessoas e nos sentimentos, a borrifar-me para os ambientes, como se não existam. E é que existem. Só depois deste reparo notei que pouco descrevo do que não é humano. Se o faço, ponho-me logo a imaginar conversas das coisas, sensações, sentimentos. Que narciso! Outro dia, só para treino, resolvi escrever uma coisa situada, onde não esquecesse a paisagem. O resultado foi fraco e nem me reconheci. A verdade é que, se eu pintasse, a única escola que me servia era a de Van Gogh, já que vejo as paisagens sempre animadas, incapaz que sou da beleza fotográfica. Vejo os rios refastelados no leito, adormecidos; ou angustiados a precipitarem-se nos declives com a pressa de quem corre por um médico se uma mulher em parto difícil; vejo árvores transidas ao ruído sanguinário das motosserras; vejo folhas em remoinho, entontecidas de vento, as árvores a despirem-se sem sex appeal, numa orfandade de troncos cinza; cheiro o pêlo molhado dos cães às portas fechadas, prontos a seguirem-nos os passos que vá-se lá saber porquê parecem conhecer de outras vidas, nós em estranheza, a mirar os pés, terão vindo de quem antes de mim, uma vontade de experimentar se desatarraxam das pernas, será que desenroscam; vejo esta humidade nevoenta que desce da serra a envolver a terra em lágrimas silenciosas, que escorrem a engordar no amarelo das folhas e tombam devagar em baque adiposo; vejo amarelos e vermelhos garridos que pontilham pela encosta a exibir vaidosa moda da época, as mães árvores inchadas de orgulho, agora é que ninguém me agarra, estou demais neste vestido. E isto não é paisagem, sou eu ainda e mais a minha visão de mundo que não cola.

Um dia, fui pela tardinha até ao rio. Fiquei pouco tempo porque um carro estacionado junto à rocha, abrigado no escuro das árvores. Evitei olhá-lo, quem sabe se no interior um par de namorados a matar saudades ou apenas o amor de asa aberta, a boca a subir lábio a lábio, a tornear o queixo, a linha do rosto, aportando a pálpebras e sobrancelhas para descer depois pelo nariz até se perder miudamente noutra; e as mãos, não sei onde as mãos que elas têm caminhos desconhecidos do resto do corpo, talvez quem sabe, subindo pelo pulso e a seguir onde a pele é tão fina que quase seda ou mais que ela porque a seda fria e a pele morna, viva, um calor que apetece no vagar do ombro. Entretanto, ponderei que seria de bom-tom abandonar o lugar e subi até casa ainda com a imagem do que não quis ver se havia, entre outras coisas  porque se me desmanchava o encanto. Quem sabe era apenas um pescador que lá em baixo tentava a sorte, ou um amante da natureza que escolhera o crepúsculo para esticar as pernas
Mas para que hei-de acrescentar paisagem em coisas destas? É que não consigo. Pronto.

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