Não
sei se me apetecia ter de novo vinte anos, é que viver cansa e a vida é mais
difícil que fácil. Mas na casa dos vinte tive um amor inocente e muito
adolescente – sou assim, sempre atrasada em relação à idade - que não
me importaria de repetir. Talvez todos os primeiros amores tenham essa aura de irrealidade,
comunguem de igual ternura, assumam a descoberta de um eu sepultado não se sabe
onde e que prestes se levanta, a nossa admiração agradada, que é isto. E, isto,
é o corpo aos acenos, estou vivo, existo. Mas é sobretudo sentir o
coração a crescer. Isso mesmo, o coração expande, alarga tanto que temos até
medo que os pulmões sufoquem dentro da caixa torácica. Eles num fio de queixa,
estamos entalados, não conseguimos respirar, os nossos alvéolos parecem
balõezitos furados. E nós aflitos da novidade, não querem ver que toda a gente
ouve o galope do estoira-vergas do coração. Nós a aquietá-lo com a mão como se
ele faça caso de alguém que não a pessoa por quem assim corre na maratona
do amor. Foi pois um primeiro amor de funda ternura, pobre de mim, incapaz que
sou de o transformar em texto.
Pois
esse adolescente, ao ouvir-me projectar, e mais atilado que eu, levou-me uma blusa sua bem encorpada, que achei um despropósito – era Abril - e recusei terminante. Ele não repontou, mas
quando à porta de casa nos despedimos, esperou que a abrisse e pronto a atirou
para o corredor, posto o que saiu em passadas de longo alcance, surdo a qualquer chamamento. Fui apanhá-la a meio do ímpeto, quando
ainda escorregava passadeira fora, assarapantada da queda em meio estranho,
onde é que eu estou. E num desvelo de alma a guardei no saco que pensava levar,
a correr-lhe a mão pela lã, no encanto de um pedaço dele comigo.
No
dia 25, levantámo-nos antes do sol e apanhámos o comboio a antever a claridade que havia de surgir quando chegássemos a Setúbal. Morosas, pesadas
de apetrechos e felizes. Chegámos a Setúbal e o dia aborrecia na sua carranca
escura e húmida. Eu a arriscar, se calhar chove. E a minha amiga, chove agora, o
sol é que ainda não nasceu. Vamos mas é esperar os teus irmãos e o resto do
pessoal. E de novo os nossos braços pendurados como ramos de árvore ajoujada ao peso dos frutos.
Na
estação de camionagem que nos pareceu a léguas da CP, aliviámos sacos e tenda –
a minha - e pouco esperámos os meus irmãos que desciam cuidadosamente os
degraus da camioneta – ela porque a miopia lhe impedia pressas, ele por ser pequeno
e os degraus num exagero de altura. Tão satisfeitos como
nós. Eu, não esqueceram os fatos de banho. E eles contentinhos da aventura na
carreira e de trazerem tudo, o caçulinha a inchar na proeza de cumprir, queres
espreitar o saco? Trazemos um cobertor como tu disseste. Tudo nos servia de
diversão e, ao vislumbrarmos o nosso amigo, o riso desatou-se-nos. A sua figura
descendo do autocarro munido de tenda, mochila e uma bacia de zinco
azul pintalgado mais os alguidares plásticos tinha qualquer coisa de castiço que predispunha quem o olhasse. E a seguir, no que se havia de tornar
um ritual de grupo, os três mais velhos foram ao café e aproveitaram para fumar
enquanto eu e os meus irmãos mais novos tomávamos conta da bagagem que
nesse momento já era bastante. Na eventualidade de alguma coisa nos ser
necessária, seriam os nossos moços de recados.
Entretanto, matando tempo e receios, fui à rua espreitar o dia e desanimei, a coisa
estava negra. Porém, regressado o grupo do café, logo o ambiente desanuviou,
isto é em Setúbal; Setúbal é assim, vais ver quando nos começarmos a aproximar
da Arrábida... E marchámos de armas e bagagens – uma catrefa
delas - para o autocarro que nos levaria
ao porto seguro e soalheiro do nosso destino. O revisor franziu-nos o
sobrolho por ter de carregar no porta bagagens tanto material de peso. Enquanto
isso, eu séria para os meus irmãos, tu só tens nove anos, ouviste? E tu ainda
não fizeste seis. Agora vejam lá o que é que fazem. Os meus olhos fixos no
tagarela do mano mais novo, não te esqueças que ainda não fizeste seis, tens só
cinco. E ele também de olhos muito abertos, tá bem.
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