segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

Por razões que não interessam à história, o meu primeiro emprego não oficioso aconteceu num lugar marítimo a borbulhar de gente, com praias de renome. Tudo diferente dos meus hábitos campestres e sonhos pequenos. Se saía à rua, vogava a apreciar os passantes e, por comparação, a sentir-me marciana. Tinha vinte anos e era o tempo da confiança. Portugal abria as portas e saia para a rua mal acreditando que a ditadura passara. Não me lembro de rostos tão contentes, nem de ouvir piropos tão bonitos, atravessados de uma fraternidade que esfumou. No primeiro de Maio de setenta e cinco fui abraçada por desconhecidos, chamada para entrar em casas pequenas de mesa posta, cantei com grupos de rua que terminavam aos abraços e palmadas nas costas.
Contudo, não fora uma amizade que enraizou e floresceu, não arriscaria um passo até à água de que, aliás, desconhecia caminhos. A essa amiga de tanto ano, corpo e alma de curiosidade indómita, devo as primeiras incursões sem tutela, por entre os baixios que a vida teima em semear. Acompanhámo-nos respeitando diferenças estruturais. Ela entendendo a limitação dos meus possíveis e salvaguardando-nos algumas descobertas como dupla. Encontrou sempre novas amizades – que não beliscavam a nossa – para voos conjuntos do que me era vedado. Alegravam-me as suas incursões estrangeiras, as passagens de ano exóticas, os dias no Algarve em grupos pequenos e jovens. Dava-me prazer ver-lhe as fotos, acompanhá-la no fazer das malas que nas mulheres mete sempre compras e roupa nova, saber após os passeios como eram as suas novas amizades, o que mais a divertira, refeições típicas e outras mesquinhices. Paciente, relatava-me com fidelidade e bom humor tudo que fosse contável.
Portanto, só voltámos a ver-nos – eu e o mar -  nos meus vinte anos. Em contramão. Um encontro proibido. O médico a olhar-me sério, nada de praia, ouviu? E a minha amiga recente, não vais fazer férias na praia, só respiras aquele ar umas horas, três ou quatro, vá, o médico é parvo, não faças caso. Eu indecisa na doença, achas? E ela, ó pá não te faz mal, pensas que os médicos sabem tudo?- e sem transição -  Vamos comprar um fato de banho para ti e umas barbatanas para mim. Ancorei de boamente naquela decisão a antever azul sem fim e sol quente. Corremos várias lojas e desaparecia nos fatos de banho. Ela expedita, por que é que não compras antes um biquíni, tem tamanhos mais pequenos…Saímos com um castíssimo biquíni castanho escuro. Eu a duvidar de tanta pele à vista, não achas escandaloso? Ela a varrer-me a castidade num ápice, tás parva ou quê, é do mais tapadinho que há. Depois, numa olhadela satisfeita ao negro das barbatanas que espreitava no saco, vamos apanhar o comboio e marcar o nosso primeiro dia de praia durante a viagem.

(Cont.)

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