No
autocarro, nós quatro a estrear o caminho e a renovar surpresas. Passámos Albarquel,
a única praia que eu conhecia; depois a Figueirinha e Galapos; então a subida tornou-se mais íngreme, todo o motor a arfar, em esforço, vencendo a elevação quase a
passo. Nós perros de mente por osmose, a inventar a má sorte, temendo que a
protecção de rede que envolvia o muro de rocha fosse inútil, que desabasse e a
coincidência de um pedregulho desabalado lá de cima a esmagar-nos como
parasitas. Observámos do outro lado a incomensurável placidez
azul, viva, móvel. Tão bonito o mar! Depois, o veículo internou-se no
arborizado da serra, ganhou algum alento na respiração e calculo que os olhos
dos meus irmãos como os meus, derramados sobre a surpresa verde de copas a
perder de vista. Ao longe e abaixo de nós, um convento no meio do arvoredo, instalado
em seu descanso solitário, a instigar-nos a perplexidade. Ainda hoje quem passa
na estrada, como é que se faz para chegar ali, a curiosidade rendida ao
silêncio rumorejante dos pinheiros e à religiosidade imaginada em homens que o
habitaram em denso mistério. Por entre as reviravoltas da serra, os meus olhos no
céu agora terrível e a certeza implantada, vai chover. O optimismo da minha
amiga, só chove depois de armarmos as tendas, vais ver. É o nosso batismo,
deixa; ficamos a saber que são mesmo impermeáveis.
No final da viagem, o autocarro
pertencia-nos por inteiro, os meus dois irmãos mais novos saltitavam de lugar
para lugar, indicadores como agulha de bússola tonta, a ver isto e aquilo por entre
exclamações e ós e ás que lhes saiam sem querer e ficavam a pairar no escuro do
dia sem saber onde poisar – graças a Deus ainda não havia cintos nem restritas exigências
a pregá-los a lugares. Enquanto isso, os dois funcionários arriscavam olhares
enviesados ao grupo como se não nos quisessem deixar na Arrábida e preferissem
levar-nos para sua casa e dar-nos almoço. Confesso que comecei a simpatizar com
os dois apesar de também me parecer que nos julgavam meio amalucados. Descemos
perante o ar desasado de revisor e motorista, os olhos deles para nós,
desculpem lá o tempo, e uma pergunta na ponta, não querem mesmo voltar para
trás? Vai chover. E, incompreensivelmente, como que ensimesmavam nos
meus dois irmãos. Mas nós como se estrangeiros, a ignorar pontos de
interrogação virados a pálpebras, ou reticências que as mãos exclamavam a
demorar-se nos sacos e tendas, a minha amiga impaciente, o homem nunca mais se
despacha a dar-nos as coisas.
Quando
já tínhamos tudo e o autocarro fez a inversão de marcha, o motorista de cabeça
de fora, têm a certeza que não querem vir, e nós um gesto apressado, a mandá-los embora com a mão enquanto distribuíamos os últimos cacarecos, agarra bem
este saco, não percas a caixa que é do fogão, cuidado com esta que é do
candeeiro e a chaminé é de vidro, e etc, etc. Finalmente, encetámos a marcha
vila fora com a minha amiga à frente a comandar as tropas, coisa em que tem
gosto e faz bem. Eu e a minha irmã mais velha seguíamos agarradas à tenda e
quase a soçobrar de sacos e traquitana, os manos à nossa frente para os
podermos ver e orientar. Lembro-me do princípio de uma rua estreita e da minha
amiga, bora andar lá para baixo que devemos ir bem, e em peremptória certeza, o
mar é sempre lá em baixo.
Mal
iniciámos a descida, as nuvens desataram-se devagar e a chuva começou a cair em pingos
grossos e espaçados. Parámos e distribuímos os alguidares e a bacia de zinco
que virámos e pusemos na cabeça. E continuámos descendo em procissão, numa
tonta alegria que em mim era entremeada de avisos, põe o alguidar mais para a
esquerda, sai do meio da rua e não deixes o alguidar tão junto à cabeça que te
tapa os olhos e ainda és atropelado, olha lá esse senhor, desvia-te. O que
melhor recordo é o sonoro dos pingos de chuva sobre o zinco Ping, ping, ping. Não
creio que algum de nós os tenha esquecido.
Depois
de muito descer, quando já quase chovia a sério, a praia do Portinho da
Arrábida. E agora?!
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