quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Para Lá do Mar

No autocarro, nós quatro a estrear o caminho e a renovar surpresas. Passámos Albarquel, a única praia que eu conhecia; depois a Figueirinha e Galapos; então a subida tornou-se mais íngreme, todo o motor a arfar, em esforço, vencendo a elevação quase a passo. Nós perros de mente por osmose, a inventar a má sorte, temendo que a protecção de rede que envolvia o muro de rocha fosse inútil, que desabasse e a coincidência de um pedregulho desabalado lá de cima a esmagar-nos como parasitas. Observámos do outro lado a incomensurável placidez azul, viva, móvel. Tão bonito o mar! Depois, o veículo internou-se no arborizado da serra, ganhou algum alento na respiração e calculo que os olhos dos meus irmãos como os meus, derramados sobre a surpresa verde de copas a perder de vista. Ao longe e abaixo de nós, um convento no meio do arvoredo, instalado em seu descanso solitário, a instigar-nos a perplexidade. Ainda hoje quem passa na estrada, como é que se faz para chegar ali, a curiosidade rendida ao silêncio rumorejante dos pinheiros e à religiosidade imaginada em homens que o habitaram em denso mistério. Por entre as reviravoltas da serra, os meus olhos no céu agora terrível e a certeza implantada, vai chover. O optimismo da minha amiga, só chove depois de armarmos as tendas, vais ver. É o nosso batismo, deixa; ficamos a saber que são mesmo impermeáveis.
            No final da viagem, o autocarro pertencia-nos por inteiro, os meus dois irmãos mais novos saltitavam de lugar para lugar, indicadores como agulha de bússola tonta, a ver isto e aquilo por entre exclamações e ós e ás que lhes saiam sem querer e ficavam a pairar no escuro do dia sem saber onde poisar – graças a Deus ainda não havia cintos nem restritas exigências a pregá-los a lugares. Enquanto isso, os dois funcionários arriscavam olhares enviesados ao grupo como se não nos quisessem deixar na Arrábida e preferissem levar-nos para sua casa e dar-nos almoço. Confesso que comecei a simpatizar com os dois apesar de também me parecer que nos julgavam meio amalucados. Descemos perante o ar desasado de revisor e motorista, os olhos deles para nós, desculpem lá o tempo, e uma pergunta na ponta, não querem mesmo voltar para trás? Vai chover. E, incompreensivelmente, como que ensimesmavam nos meus dois irmãos. Mas nós como se estrangeiros, a ignorar pontos de interrogação virados a pálpebras, ou reticências que as mãos exclamavam a demorar-se nos sacos e tendas, a minha amiga impaciente, o homem nunca mais se despacha a dar-nos as coisas.
Quando já tínhamos tudo e o autocarro fez a inversão de marcha, o motorista de cabeça de fora, têm a certeza que não querem vir, e nós um gesto apressado, a mandá-los embora com a mão enquanto distribuíamos os últimos cacarecos, agarra bem este saco, não percas a caixa que é do fogão, cuidado com esta que é do candeeiro e a chaminé é de vidro, e etc, etc. Finalmente, encetámos a marcha vila fora com a minha amiga à frente a comandar as tropas, coisa em que tem gosto e faz bem. Eu e a minha irmã mais velha seguíamos agarradas à tenda e quase a soçobrar de sacos e traquitana, os manos à nossa frente para os podermos ver e orientar. Lembro-me do princípio de uma rua estreita e da minha amiga, bora andar lá para baixo que devemos ir bem, e em peremptória certeza, o mar é sempre lá em baixo.
Mal iniciámos a descida, as nuvens desataram-se devagar e a chuva começou a cair em pingos grossos e espaçados. Parámos e distribuímos os alguidares e a bacia de zinco que virámos e pusemos na cabeça. E continuámos descendo em procissão, numa tonta alegria que em mim era entremeada de avisos, põe o alguidar mais para a esquerda, sai do meio da rua e não deixes o alguidar tão junto à cabeça que te tapa os olhos e ainda és atropelado, olha lá esse senhor, desvia-te. O que melhor recordo é o sonoro dos pingos de chuva sobre o zinco Ping, ping, ping. Não creio que algum de nós os tenha esquecido.

Depois de muito descer, quando já quase chovia a sério, a praia do Portinho da Arrábida. E agora?!

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