sábado, 16 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Ainda entrava a tarde soalhenta e já os mais festeiros punham pés ao caminho. As matronas velejavam pela berma do alcatrão à bolina das conversas, naus bojudas ou magros batéis que remavam de alpercata, a adiar ajustes dolorosos com sapatos vexados, a graxa um hálito que exalava do saco de mão. A seu lado, alheia a conversas e rumores, olhos presos a tudo, a compostura infantil pavoneando-se na roupa menos usada, cabelo a preceito e pernas ainda saltitantes. Atrás ou na frente, borboleteava a agilidade singular das filhas casadoiras, sedução que passeia em juvenis ademanes e se espraia por saias rodadas e alegria de plissados nos vestidinhos com debrum em fita de veludo cosida a ponto atrás. E o orgulho contemplativo e galinácio das matronas eclipsava serões e canseira noite atrás de noite, um amontoado de horas devorado por agulha e dedal e subtraído às necessidades do corpo moído, e a conta da mercearia a engordar mau grado a economia milimétrica em cada franzido e prega, cada botão ou metro de fita. E os homens, os seus homens esguios e enxutos de carnes, seguiam depois de bicicleta, por vezes já bem bebidos, pedalando a espalhar vapores e clarear o juízo. Quanto aos rapazes, erguidos na sua altura, brilhantina a escorrer, alardeavam um sem fim de energia zanzando estrada acima e abaixo, as bicicletas um trampolim de circo, uma corda de malabarista, um rufar de tambor. Giravam em volta dos bandos que se faziam à estrada, escolhido um para o espectáculo de travagens inesperadas, campainhas sonantes, despiques de velocidade. Os rapazes eram cães que cheiravam a caça e delimitavam espaços. E por quilómetros se arrastava este jogo sedutor, todo aroma e cio, descobrindo risinhos e claridades do corpo, suores e rubores súbitos, glândulas no labor de propícias proximidades que não  aconteciam, um ignoto e caudaloso gosto de beijos que se deseja e coalha no ar. E as pernas sempre a andar. As pernas maquinais, no seu caminho de ir para qualquer lugar, a avançar no pó da estrada, quando o que apetece é parar naquela travagem centrípta que, mesmo à beirinha do corpo, estremeceu a saia. E dentro da roda de poeira, leva-me contigo, monto-me no suporte, agarro-te pela cintura e vamos os dois para onde só nós que a vida é esta viagem de bicicleta até ao infinito. Mas as matronas no seu papel, risonhas, a enxotar  vizinhanças, xô, que é lá isso, o alcatrão é ali, põe-te a andar estafermo, tás  a encher a gente de pó.

Da minha rua vi passar toda a espécie de transeuntes. Vi sair os rapazes atrás das garotas, vi-os voltejar como zangãos, ir atrás e ir à frente, quase se perderem e voltarem súbitos para mais uns círculos. E minha mãe no seu descanso, a deixar sobre a cama a roupa de meu pai, a alinhá-la longamente, sem esquecer os acessórios, chapéu, lenço de bolso, suspensórios. Em baixo, no chão, os sapatos sem um grão de pó. Entretanto, pus-me de guarda à estrada onde as hordas se multiplicavam, a aldeia ameaçava desertar por inteiro. Mas da bicicleta de meu pai nem rasto. Vieram as tias velhas, prontinhas e de chapéu de palha por via da soalheira. Receosa, comecei a choramingar que também queria ir. As tias descansaram-me: garantiram-me a festa, nem que fossem elas a levar-me. Depois, deitaram olhos ao relógio e murmuraram que o presidente do conselho vinha à inauguração e ia haver muita gente, tínhamos que ir embora. Foi nessa altura  que minha mãe se tornou resoluta e foi vestir-se sob um coro de assentimentos, ele logo vem, é que ficou para aí nalguma conversa, tu bem sabes como ele é, deixa-lhe a roupa que sabe vestir-se sozinho. Do caminho, ficou-me o horror de uma dor de pés, a memória de uma sede exaustiva a que as tias, no seu desplante de gente velha, deram fim - chegaram-se a um poço desconhecido emborcaram o caldeiro e deram-me a beber  -, e a preocupação de minha mãe com as bolhas que me surgiam nos calcanhares. Grande parte do caminho, carregou-me à ilharga, as tias a chasquinar, não tens vergonha tão crescida e ainda ao colo. E para minha mãe, põe a gaiata no chão, ela que se descalce; ó mulher, não te apoquentes, vais ver, daqui a pouco ele passa aqui a tocar a campainha e leva-a no quadro da bicicleta que hoje a guarda não multa ninguém. Era nessa altura que me lembrava do meu pai. Que não passou por nós. 

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