Ainda
entrava a tarde soalhenta e já os mais festeiros punham pés ao caminho. As
matronas velejavam pela berma do alcatrão à bolina das conversas, naus bojudas ou
magros batéis que remavam de alpercata, a adiar ajustes dolorosos com sapatos vexados,
a graxa um hálito que exalava do saco de mão. A seu lado, alheia a conversas e
rumores, olhos presos a tudo, a compostura infantil pavoneando-se na roupa menos
usada, cabelo a preceito e pernas ainda saltitantes. Atrás ou na frente, borboleteava
a agilidade singular das filhas casadoiras, sedução que passeia em juvenis ademanes
e se espraia por saias rodadas e alegria de plissados nos vestidinhos com
debrum em fita de veludo cosida a ponto atrás. E o orgulho contemplativo e
galinácio das matronas eclipsava serões e canseira noite atrás de noite, um
amontoado de horas devorado por agulha e dedal e subtraído às necessidades do
corpo moído, e a conta da mercearia a engordar mau grado a economia milimétrica
em cada franzido e prega, cada botão ou metro de fita. E os homens, os seus
homens esguios e enxutos de carnes, seguiam depois de bicicleta, por vezes já
bem bebidos, pedalando a espalhar vapores e clarear o juízo. Quanto aos
rapazes, erguidos na sua altura, brilhantina a escorrer, alardeavam um sem fim
de energia zanzando estrada acima e abaixo, as bicicletas um trampolim de
circo, uma corda de malabarista, um rufar de tambor. Giravam em volta dos
bandos que se faziam à estrada, escolhido um para o espectáculo de travagens
inesperadas, campainhas sonantes, despiques de velocidade. Os rapazes eram cães
que cheiravam a caça e delimitavam espaços. E por quilómetros se arrastava este
jogo sedutor, todo aroma e cio, descobrindo risinhos e claridades do corpo,
suores e rubores súbitos, glândulas no labor de propícias proximidades que
não aconteciam, um ignoto e caudaloso gosto
de beijos que se deseja e coalha no ar. E as pernas sempre a andar. As pernas
maquinais, no seu caminho de ir para qualquer lugar, a avançar no pó da
estrada, quando o que apetece é parar naquela travagem centrípta que, mesmo à
beirinha do corpo, estremeceu a saia. E dentro da roda de poeira, leva-me
contigo, monto-me no suporte, agarro-te pela cintura e vamos os dois para onde
só nós que a vida é esta viagem de bicicleta até ao infinito. Mas as matronas no
seu papel, risonhas, a enxotar vizinhanças,
xô, que é lá isso, o alcatrão é ali, põe-te a andar estafermo, tás a encher a gente de pó.
Da
minha rua vi passar toda a espécie de transeuntes. Vi sair os rapazes atrás das
garotas, vi-os voltejar como zangãos, ir atrás e ir à frente, quase se perderem
e voltarem súbitos para mais uns círculos. E minha mãe no seu descanso, a
deixar sobre a cama a roupa de meu pai, a alinhá-la longamente, sem esquecer os
acessórios, chapéu, lenço de bolso, suspensórios. Em baixo, no chão, os sapatos
sem um grão de pó. Entretanto, pus-me de guarda à estrada onde as hordas se
multiplicavam, a aldeia ameaçava desertar por inteiro. Mas da bicicleta de meu
pai nem rasto. Vieram as tias velhas, prontinhas e de chapéu de palha por via
da soalheira. Receosa, comecei a choramingar que também queria ir. As tias
descansaram-me: garantiram-me a festa, nem que fossem elas a levar-me. Depois, deitaram
olhos ao relógio e murmuraram que o presidente do conselho vinha à inauguração e
ia haver muita gente, tínhamos que ir embora. Foi nessa altura que minha mãe se tornou resoluta e foi
vestir-se sob um coro de assentimentos, ele logo vem, é que ficou para aí
nalguma conversa, tu bem sabes como ele é, deixa-lhe a roupa que sabe vestir-se
sozinho. Do caminho, ficou-me o horror de uma dor de pés, a memória de uma sede
exaustiva a que as tias, no seu desplante de gente velha, deram fim - chegaram-se
a um poço desconhecido emborcaram o caldeiro e deram-me a beber -, e a preocupação de minha mãe com as bolhas que
me surgiam nos calcanhares. Grande parte do caminho, carregou-me à ilharga, as
tias a chasquinar, não tens vergonha tão crescida e ainda ao colo. E para minha
mãe, põe a gaiata no chão, ela que se descalce; ó mulher, não te apoquentes,
vais ver, daqui a pouco ele passa aqui a tocar a campainha e leva-a no quadro
da bicicleta que hoje a guarda não multa ninguém. Era nessa altura que me
lembrava do meu pai. Que não passou por nós.
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