domingo, 24 de abril de 2016

Humanas Verdades

      Envelhecemos devagar e assim ganhamos o hábito de sermos outros. Um cabelo branco aqui e ali e, no curso dos dias e das horas, chegamos à massificação. E do grisalho passamos a neve invernosa e a rugas flácidas, sinais de vida bem assente. Neles, pulsa o passado. Tanto desgosto, tanto sonho inconfessado, alguma alegria inesperada e acontecimentos de coração cheio, tanto mau estar funesto. No corpo, muda-se-nos o ritmo vital e a figura, a saúde fragiliza, dá de si, castiga.
A alma – ou o que for, espírito, mente, um daimon qualquer -, ao invés, como que dilata. Alarga-se pelos dias, serena e deleitada como antes não sabia ser. Agradece os minutos e horas que corriam sem anelo. Vai-se calando a queixas, lamentos, cegarregas de insatisfação que perdem sentido. O alfinete dos projectos  espeta nas proximidades sem que ainda se percam desejos insondáveis e longínquos, cujos talvez nem já concretizemos. E é como se o futuro seja eternidade presente, enfeitada a novos pormenores. As mudanças radicais tiveram o seu tempo. Agora, assustam-nos corpo e mente. O quotidiano começa a bastar-nos, até por nos exigir maior atenção e energia (tudo cansa). O nosso mundo torna-se vagaroso enquanto o restante evolve em doideira.
            O meu pai é este ser assim. Que envelhece aos poucos e obstaculiza saídas,  recusa deixar o seu canto e não se move nem para visitar o filho preferido. Vislumbro-o numa densidade de sinais propedêuticos ou de velhice instalada, alguns deles em comunhão comigo. Se regresso a sua casa e à nossa terra – aquela sim, é a minha terra – entra-me uma alegria esperançosa. Olho-lhe o casario, as ervas e flores silvestres a esmo, e desejo nunca ter saído, sento-me na mágoa incompreensível de ter sido enxotada. Ignoro por que quis, tão empenhadamente, afastar-me. A verdade é que, por um ramalhete de razões, ali passei os melhores seis anos da minha vida adulta. Mas meu pai é assim. Ou era. 
             Não sei onde quero morrer, a morte chega sempre no lugar que lhe apraz; para ir embora, qualquer lugar serve. Mas, caso dure mais do que uma década, é-me agradável a ideia de voltar a viver ali. A memória vedando-me lembranças, a escurecer-me em silêncios cada vez mais fundos, e eu a abrir janelas para o mundo que ajudei a erguer, onde as minhas mãos se afadigaram e fatigaram um imenso e a minha alma se escudou de amargura e revolta, mas também de ternura e mansidão. Onde me habituei a não sonhar e me ocupei a desejar sobreviver, um dia atrás do outro, que só assim se aguenta o longo prazo.  

            Passo pelas quintinhas e daria qualquer coisa para viver numa delas: uma qualquer coisa imaginária, que todas são habitadas. Por vezes, passeio por um subúrbio com estrada de terra. No virar da curva, uma casita pequena e remodelada espreita o piso. Pintaram-lhe barras azuis e tem janelas, portas e telhado novos. Ali, espera. Em explosão de vazio. Pede que a encham e lhe criem rotinas de portas e janelas, cheiros de gente. Quase em frente, senta-se o encontro diário de duas velhotas com hora marcada. E imagino-me benévola, a espreitá-las por detrás das cortinas. Ou, quem sabe, um dia, eu me sento assim à porta do monte de meu pai, que, então, é minha. E finalmente regresso. Antes do fim definitivo. Talvez me exista ainda essa liberdade indefinida. 

Sem comentários:

Enviar um comentário