segunda-feira, 4 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Depois, a professora distribuiu três moldes a cada fila e mandou desenhá-los e recortar, ensinando a economizar papel. Cumpridores entusiastas e em ânsias pelo seguimento do jogo, passámos os moldes uns aos outros. Por fim, trocámos entre nós as sobras dos recortes e cada um fez uma espécie de alfinete de cabecinha modelo XXL. E em seguida montámos uma flor farfalhuda atravessada bem a meio pelo nosso alfinete de cabeça gigante e atámos tudo com um fio transparente. E todas as flores ficaram lindas, até a minha. Nessa altura, a professora deu a sessão por terminada e arrumámos o material. Entregou uma extensão de fio a cada um e pediu cinquenta flores daquelas por aluno, feitas em casa, prometendo papel e fio quando necessários. Aconselhou os pais a  desmancharem as nossas flores para fazerem novos moldes e entenderem a técnica. E deu-nos duas semanas de prazo.
À tarde, saímos floridos e palavrosos e seguimos estrada fora numa auréola de satisfação nunca vista. Eu e Lídia combinámos fazer os nossos moldes em minha casa a partir de uma caixa cartonada que andava na barraca. E Luís resolveu inflectir para a mercearia a fim de convencer o ajudante de merceiro a dar-lhe duas caixas velhas de soquetes para fazer os seus. E foi um nunca acabar de flores. Inexplicavelmente, o mundo feminino mobilizou-se por inteiro, mães, tias avós, madrinhas, vizinhança chegada. E era ver as mulheres sentadas às portas pela tardinha, o moxo baixinho tapado de saias, atarefadas em corte e recorte, as sobras pequenas a pintalgar aventais, papeis de seda e frisados que esvoaçavam em volta mal um inaudível suspiro de brisa, um espirro, uma tosse inconveniente. As crianças riam e agarravam no ar aquelas penas coloridas com que faziam os alfinetes de cabeça a que as mulheres chamavam o olho da flor. Toda a gente queria ajudar a tornar mais bonita a festa do concelho. 
Talvez seja verdade o que então pensei sobre aquele frenesim florido que acometeu a aldeia: havia a esperança de mais benesses, mesmo que não soubéssemos quais e na altura o termo fosse marginal aos conteúdos e interesses infantis. Mas eu ouvira as tias velhas a esperançar, diz que é melhor para toda a gente, vamos lá a ver...Quando perguntei a Lídia, ela atirou-me um, sei lá!, tão desimportado que me admirou e quis saber o que tinha. Mas estava assaz longe de antever o que me aguardava.  Ela, a minha irmã foi esta noite para o hospital, estava com as dores. E desatou num choro convulso. Lídia nunca chorava. Como Luís, aparava as reguadas sem uma lágrima; caía e, à vista do sangue, franzia-se numa careta de dor, mas de olhos secos; se os progenitores a desancavam, desatava a berrar o que eu apelidava de “nomes feios”, que só aumentavam as porradas, e nenhuma humidade lhe assomava às pestanas. Quedei estupefacta, sem saber o que fazer, sem saber mesmo por que razão chorava. Andava contente com a ideia de um sobrinho e eu já tinha perguntado a minha mãe o que teria de fazer para ter também um. Mas, depois da explicação, concluíra que tinha de aceitar o inexorável de Lídia. A verdade é que me  passava sempre à frente, ganhava-me pontos em todos os aspectos da vida. Entretanto, tirei-lhe a mala da mão, assoa-te., e estendi-lhe o trapinho que minha mãe colocara no bolso da bata. Ela assoou-se, postou-se maquinal a olhar a camioneta da carreira que passava, e atirou em determinação e má vontade, eu não quero ter filhos. E pranteou-se toda, encheu-se de soluços fundos. 

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