Depois, a professora distribuiu três
moldes a cada fila e mandou desenhá-los e recortar, ensinando a economizar
papel. Cumpridores entusiastas e em ânsias pelo seguimento do jogo, passámos os moldes uns aos outros. Por fim, trocámos entre nós as sobras
dos recortes e cada um fez uma espécie de alfinete de cabecinha modelo XXL. E em seguida montámos uma flor farfalhuda atravessada bem a meio pelo
nosso alfinete de cabeça gigante e atámos tudo com um fio transparente. E todas
as flores ficaram lindas, até a minha. Nessa altura, a professora deu a sessão
por terminada e arrumámos o material. Entregou uma extensão de fio a cada um e
pediu cinquenta flores daquelas por aluno, feitas em casa, prometendo papel e
fio quando necessários. Aconselhou os pais a desmancharem as nossas
flores para fazerem novos moldes e entenderem a técnica. E deu-nos duas semanas
de prazo.
À tarde, saímos floridos e palavrosos e
seguimos estrada fora numa auréola de satisfação nunca vista. Eu e Lídia
combinámos fazer os nossos moldes em minha casa a partir de uma caixa
cartonada que andava na barraca. E Luís resolveu inflectir para a mercearia a
fim de convencer o ajudante de merceiro a dar-lhe duas caixas velhas de
soquetes para fazer os seus. E foi um nunca acabar de flores.
Inexplicavelmente, o mundo feminino mobilizou-se por inteiro, mães, tias avós,
madrinhas, vizinhança chegada. E era ver as mulheres sentadas às portas pela
tardinha, o moxo baixinho tapado de saias, atarefadas em corte e recorte, as
sobras pequenas a pintalgar aventais, papeis de seda e frisados que esvoaçavam
em volta mal um inaudível suspiro de brisa, um espirro, uma tosse
inconveniente. As crianças riam e agarravam no ar aquelas penas coloridas com
que faziam os alfinetes de cabeça a que as mulheres chamavam o olho da flor.
Toda a gente queria ajudar a tornar mais bonita a festa do concelho.
Talvez
seja verdade o que então pensei sobre aquele frenesim florido que acometeu a
aldeia: havia a esperança de mais benesses, mesmo que não soubéssemos quais e na
altura o termo fosse marginal aos conteúdos e interesses infantis. Mas eu
ouvira as tias velhas a esperançar, diz que é melhor para toda a gente, vamos
lá a ver...Quando perguntei a Lídia, ela atirou-me um, sei lá!, tão desimportado
que me admirou e quis saber o que tinha. Mas estava assaz longe de antever o que me aguardava. Ela, a minha irmã foi esta noite para o
hospital, estava com as dores. E desatou num choro convulso. Lídia nunca
chorava. Como Luís, aparava as reguadas sem uma lágrima; caía e, à vista do
sangue, franzia-se numa careta de dor, mas de olhos secos; se os progenitores a desancavam, desatava a berrar o que eu apelidava de “nomes feios”, que só
aumentavam as porradas, e nenhuma humidade lhe assomava às pestanas. Quedei
estupefacta, sem saber o que fazer, sem saber mesmo por que razão chorava. Andava
contente com a ideia de um sobrinho e eu já tinha perguntado a minha mãe o que
teria de fazer para ter também um. Mas, depois da explicação, concluíra que
tinha de aceitar o inexorável de Lídia. A verdade é que me passava
sempre à frente, ganhava-me pontos em todos os aspectos da vida. Entretanto,
tirei-lhe a mala da mão, assoa-te., e estendi-lhe o trapinho que minha mãe
colocara no bolso da bata. Ela assoou-se, postou-se maquinal a olhar a camioneta da carreira
que passava, e atirou em determinação e má vontade, eu não quero ter filhos. E
pranteou-se toda, encheu-se de soluços fundos.
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