domingo, 17 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Quando chegámos, a vila formigava de braços, pernas, cabeças, barulho. À medida que nos aproximávamos do largo onde as nossas flores eram telha, sentia nos passos de minha mãe uma reticência involuntária que as tias acompanhavam de má catadura, por este andar não nos chegamos perto de mesa nenhuma, passam-nos todos à frente. Mas ela quedava-se silenciosa, pescoço em periscópio, arredondando vistas. E eu cá em baixo, aos puxões impacientes, afogada em braços e pernas, a boca junto a traseiros que avultavam como pães gigantes sob as ramagens, não vejo nada. As tias fartas de mim, chata como tudo esta gaiata, que é que queres ver, isto tá cheio de gente, não há que ver.
Depois de muitos tem-te não caias, aportámos a uma clareira de onde via um pedaço da enorme mesa e um ângulo da praça com céu de flores. Fixei o repasto e entusiasmei na fartura de ignotas iguarias: travessas com o que hoje chamo de rissóis, empadas e croquetes. Como minha mãe distraía de novo e não me fazia caso, perguntei às tias o que continham, mas elas não sabiam, riram-se dizendo, deve ser bom, daqui a bocado provas para veres a que sabe. Mas eu já embebia num bolo enorme coberto de neve açucarada e repleto de cerejas no topo. No hábito dos bolos caseiros entornados em forma de buraco e cozidos no fogão a petróleo, abismei para a maravilha e prometi a mim mesma que ia prová-lo sem demora. 
Ficámos ali, em espera, enquanto uma voz desagradável perorava ao microfone. Perguntei às tias a razão de não começarmos a comer e elas, schiu, não se pode, não vês as cordas e os tropas a guardar as mesas? Tá caladinha que tá a falar o presidente do conselho. Perguntei a minha mãe quem era o presidente do conselho e ela num véu triste, é aquele senhor que manda em Portugal e tem um retrato pendurado lá na tua escola, aquele do nariz comprido que está de lado na fotografia. Endireitei-me logo, era um homem importante. Depois de muito instadas, as tias ergueram-me uns momentos pelas axilas para saber como era um presidente em carne e osso, enquanto diziam a minha mãe, vai lá ver se o achas que a gente não sai daqui. Depois desceram-me e fiquei de mão dada às duas velhas, quase junto às cordas, a marcar de olho um buraco por onde me ia escapulir mal a tropa desse sinal de ataque às mesas. Mas depressa me cansei de esperar e ansiei o eterno pfesente da mão de minha mãe. Dela, nem sinal. Entretanto, as tias entretinham-se a falar deste e daquele que estava aqui ou ali e eu num suado aperto de costas e rabos inquietos, de novo submersa no encapelado de gente que acatitava a cada minuto, uma das tias a olhar para baixo enquanto reforçava a travessa no arrepanhado do carrapito, agarra-te à saia e não me deslargues ouviste? E depois prenunciou para a irmã, já está a falar outra vez o presidente da Câmara, a seguir vamos comer. E eu no mundo cá de baixo, imersa no fascínio de tanto sapato empoeirado de caminho, tanta gente como nós, quilómetros de desejo palmilhados à míngua. Em volta das mesas ululava uma mole de fome sem tamanho, o desbarato da pobreza a pique. A garantia do presidente da câmara de que o alimento chegaria para todos e pedindo civismo era, já nessa altura, mera futilidade. A multidão comprimia-se e agastava, atirava-se contra as cordas que a tropa sustinha a custo a poder de braços e piparote. No empurra para cá e empurra para lá, crescia um  vai-e-vem de cabeças. A onda de gente faminta e impaciente avolumava sem apelo, pronta a abater-se sobre as mesas no ímpeto fatal. O motor humano  ia-se fortalecendo a engolir normas e obstáculos e perseguia cegamente a cenoura ali tão perto. Sentidos em labareda alta cheiravam, viam e quase sentiam desfazer na língua carnes e doces, pão e vinho, as grandes bananas e rodelas de ananás que nunca tinham provado, as cerejas a que não chegava a bolsa e agora desbordavam na largura de convidativas cestas de verga, os rebuçados com recheio, os bolos pequenos em forminhas de papel mais bonitas que as da pastelaria, os bombons que só os olhos comiam nas montras de loja. Tentações. O Éden de mesa posta. Gula luxuriosa a um metro ou metro e meio de distância. 
Lá mais ao fundo, além do céu florido, os panelões de sopa e um cheiro bom de carne grelhada passeava-se em redor dos bois que assavam sobre brasido esperto,  atravessados por espetos descomunais que cozinheiros afogueados manejavam com esforço de roldanas e cordas, os longos aventais salpicados de sangue e gordura, quais gravuras de Rorschach a branquejar no calor da noite. Da compressão a que me vi sujeita, retive os pés que se fincavam para não perder lugar e a minha involuntária desistência, eu a ficar para trás da parede humana que avançava sem interstícios, o meu corpo a desmembrar-se  em recuo instintivo, feito braço de boneca que desencaixa; bati de costas na esquina de um muro salvador olhando fascinada o cataclismo de tornado que cerceara amarras e se lançava para a frente em apoteose. Senti-me ultrapassada por mil pernas e pés, os gritos das tias perdidos, a mesa que me fugiu. E minha mãe desaparecida.


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