Entrámos
na sala e o armário das flores abarrotava, as portas de vidro incapazes de
segurar aquele jardim sem precedentes. Luís seguiu-nos a admiração e bichanou
quando passámos, estive a contá-las, já ali estão mais de mil. Escancarei os
olhos, então mil flores era aquilo. Como é que mil flores cabiam ali, na
minha cabeça mil era uma quantidade de coisas a perder de vista, tinha
imaginado a aldeia submersa em flores e afinal, acamadas umas sobre as outras,
cabiam no armário grande. Lembrando a dúvida, parei e perguntei-lhe, o que é subir a concelho? E
ele, não sei muito bem, deve ser uma coisa, o meu pai disse que o concelho
estava na outra vila e agora vem para aqui, é porque é uma coisa. Mas a
professora interrompeu-nos a lógica, deixem-se de conversas. Maria Aurora, para o lugar
se faz favor. Desandei sem entender a razão da professora me chamar Maria
Aurora e não Bia, como toda a gente. Revi Lídia a imitar-lhe os movimentos de
lábios quando fazia de professora, Maria Aurora, cuidado com a acentuação. Mal me sentei, a mestra bateu a régua na mesa,
pediu que até final da semana entregássemos
as flores que faltavam e avisou que, na semana seguinte, escolhia dois alunos
de cada classe para irem com ela entregar e pendurar as flores no recinto da
festa. Em poucos segundos, a escola pejou de cochichos, vozes ciciadas e pouco
originais que desejavam, Deus queira que me escolha a mim, Deus queira que me escolha
a mim.
Os dias passaram devagar para a
nossa expectativa. Primeiro o armário extravasou de flores; depois, foi a vez
da chaminé parecer um vaso primaveril; por último, o canto esquerdo da sala
de entrada onde pendurávamos lanches e casacos, mudou-se em canteiro garrido.
Passou o fim de semana, e a professora sem escolher. Na segunda feira todos
esperávamos o anúncio, mas ela silenciou. E na terça, a sentença: ia fazer um
ditado a cada classe e escolhia os dois alunos com ditado melhor; Avaliava erros e caligrafia. Não houve, nem antes nem
depois daquele dia, atenção mais extrema ao fazer do ditado. À vez, vi alunos
arregaçarem mangas em dobras atentas, como se os esperasse um trabalho pesado
mas minucioso; observei os garotos da primeira e segunda classes, que ainda
faziam ditados a lápis, em trabalhos de afiador concentrado e borracha pronta;
reparei nos da terceira e da quarta em balanços de tinta, experimentando canetas e verificando aparos; as
raparigas de cabelo comprido verificavam ganchos e elásticos e, as que não o
tinham apanhado em trança ou rabo de cavalo, davam-lhe um nó para não
incomodar; as que usavam cabelo curto, apressavam-se a lançar atrás da orelha
uma ou outra mecha mais rebelde. Quase todos tínhamos as mãos suadas e quem usava
um trapinho ou lenço de assoar limpo puxava-o à lide, limpava-se e emprestava-o
a quem quisesse. Os parceiros desejavam-se mutuamente sorte enquanto
organizavam a carteira com o método de um general em campo de batalha. Eu e
Lídia rememorávamos o acento circunflexo e o grave, em segredo de estado, por
meio de papelinhos dobrados que passávamos uma à outra. Em redor, todos bichanavam
dificuldades e consultavam o livro a confirmar grafias a que eram mais avessos.
A regra era clara: em todas as classes o livro era aberto ao acaso e só havia
conhecimento da lição escolhida quando a professora ditasse o título. Cada um fazia
o exercício em folha própria que a professora colectava para levar consigo e
corrigir em casa. De tão grande aplicação resultou uma sala soterrada em
esforço e cansaço que se desprendiam do amplo conjunto de bochechas a
avermelhar e que expandiu, no final do ditado, em audível suspiro de alívio.
Mais
tarde, a caminho de casa, abrimos o livro para a verificação e parámos na berma
da nacional em grupinhos pequenos, o
dono do livro a seguir as palavras com o dedo e meia dúzia de cabeças
debruçadas para as letras, enquanto um ou outro ia balbuciando tristezas de
erros e acentos. Algumas crianças auto excluíam-se de imediato, abandonavam o
grupo de cabeça baixa, a mala esmorecida a bater-lhe nas pernas e saía-lhes o
desalento, já não vou. Lídia era um conjunto à parte. Silenciosa, desinteressara
da verificação de erros e estugava o passo, desejando chegar e saber da irmã. Eu e Luís acenámos-lhe
e continuámos cá atrás, em passinho tagarela, a fazer planos para o desconhecido, íman que o imaginário infantil não se cansa de agradecer.
Não
saberia dizer como, mas antes da professora ver os ditados e eu ver o livro,
antes do Luís alvitrar, soube que ia acompanhar a professora.Talvez por palpite
sem importância, premonição de cacarácá. Ainda assim, uma certeza.
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