terça-feira, 5 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Entrámos na sala e o armário das flores abarrotava, as portas de vidro incapazes de segurar aquele jardim sem precedentes. Luís seguiu-nos a admiração e bichanou quando passámos, estive a contá-las, já ali estão mais de mil. Escancarei os olhos, então mil flores era aquilo. Como é que mil flores cabiam ali, na minha cabeça mil era uma quantidade de coisas a perder de vista, tinha imaginado a aldeia submersa em flores e afinal, acamadas umas sobre as outras, cabiam no armário grande. Lembrando a dúvida, parei e  perguntei-lhe, o que é subir a concelho? E ele, não sei muito bem, deve ser uma coisa, o meu pai disse que o concelho estava na outra vila e agora vem para aqui, é porque é uma coisa. Mas a professora interrompeu-nos a lógica, deixem-se de conversas. Maria Aurora, para o lugar se faz favor. Desandei sem entender a razão da professora me chamar Maria Aurora e não Bia, como toda a gente. Revi Lídia a imitar-lhe os movimentos de lábios quando fazia de professora, Maria Aurora, cuidado com a acentuação.  Mal me sentei, a mestra bateu a régua na mesa,  pediu que até final da semana entregássemos as flores que faltavam e avisou que, na semana seguinte, escolhia dois alunos de cada classe para irem com ela entregar e pendurar as flores no recinto da festa. Em poucos segundos, a escola pejou de cochichos, vozes ciciadas e pouco originais que desejavam, Deus queira que me escolha a mim, Deus queira que me escolha a mim.
            Os dias passaram devagar para a nossa expectativa. Primeiro o armário extravasou de flores; depois, foi a vez da chaminé parecer um vaso primaveril; por último, o canto esquerdo da sala de entrada onde pendurávamos lanches e casacos, mudou-se em canteiro garrido. Passou o fim de semana, e a professora sem escolher. Na segunda feira todos esperávamos o anúncio, mas ela silenciou. E na terça, a sentença: ia fazer um ditado a cada classe e escolhia os dois alunos com ditado melhor; Avaliava  erros e caligrafia. Não houve, nem antes nem depois daquele dia, atenção mais extrema ao fazer do ditado. À vez, vi alunos arregaçarem mangas em dobras atentas, como se os esperasse um trabalho pesado mas minucioso; observei os garotos da primeira e segunda classes, que ainda faziam ditados a lápis, em trabalhos de afiador concentrado e borracha pronta; reparei nos da terceira e da quarta em balanços de tinta,  experimentando canetas e verificando aparos; as raparigas de cabelo comprido verificavam ganchos e elásticos e, as que não o tinham apanhado em trança ou rabo de cavalo, davam-lhe um nó para não incomodar; as que usavam cabelo curto, apressavam-se a lançar atrás da orelha uma ou outra mecha mais rebelde. Quase todos tínhamos as mãos suadas e quem usava um trapinho ou lenço de assoar limpo puxava-o à lide, limpava-se e emprestava-o a quem quisesse. Os parceiros desejavam-se mutuamente sorte enquanto organizavam a carteira com o método de um general em campo de batalha. Eu e Lídia rememorávamos o acento circunflexo e o grave, em segredo de estado, por meio de papelinhos dobrados que passávamos uma à outra. Em redor, todos bichanavam dificuldades e consultavam o livro a confirmar grafias a que eram mais avessos. A regra era clara: em todas as classes o livro era aberto ao acaso e só havia conhecimento da lição escolhida quando a professora ditasse o título. Cada um fazia o exercício em folha própria que a professora colectava para levar consigo e corrigir em casa. De tão grande aplicação resultou uma sala soterrada em esforço e cansaço que se desprendiam do amplo conjunto de bochechas a avermelhar e que expandiu, no final do ditado, em audível suspiro de alívio.
Mais tarde, a caminho de casa, abrimos o livro para a verificação e parámos na berma da nacional em grupinhos pequenos,  o dono do livro a seguir as palavras com o dedo e meia dúzia de cabeças debruçadas para as letras, enquanto um ou outro ia balbuciando tristezas de erros e acentos. Algumas crianças auto excluíam-se de imediato, abandonavam o grupo de cabeça baixa, a mala esmorecida a bater-lhe nas pernas e saía-lhes o desalento, já não vou. Lídia era um conjunto à parte. Silenciosa, desinteressara da verificação de erros e estugava o passo,  desejando chegar e saber da irmã. Eu e Luís acenámos-lhe e continuámos cá atrás, em passinho tagarela,  a fazer planos para o desconhecido, íman que o imaginário infantil  não se cansa de agradecer.  

Não saberia dizer como, mas antes da professora ver os ditados e eu ver o livro, antes do Luís alvitrar, soube que ia acompanhar a professora.Talvez por palpite sem importância, premonição de cacarácá. Ainda assim,  uma certeza. 

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