quarta-feira, 13 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

De tanto vê-los abaixo e acima, aprendemos a gostar deles. O soldado raso tornou-se um elemento do nosso mundo, pertença. Mal a cadência das botas estremecia o ar, despovoávamos casas e quintais e acorríamos à berma da estrada de terra a observá-los. Se havia bom tempo, alguns garotos armavam-se de pau às costas e colavam na fila traseira, o instrutor a fingi-los invisíveis. Até que se sentiam ultrapassados pelo ritmo imposto à coluna, começavam a ficar para trás e regressavam vencidos. Para nós, a soldadesca era árvore com dois ramos: de um lado o obediente soldado raso; do outro, os seus mandantes. Ora quem mandava, estávamos fartos de o sentir, era pródigo a distribuir sofrimento.
Mas aqueles três ou quatro soldados mostraram-nos outro lado da vida militar. Eram simpáticos, prestáveis, tinham farda limpa e bota reluzente. Pareciam-nos um bocado convencidos, mas quando a professora se apresentou, obedeceram-lhe como se fosse uma rainha. Em conversa amena e sem remorso, delapidaram as nossas convicções sobre o seu mundo. Contaram-nos que os soldados que víamos passar cumpriam o seu tempo de recruta, escola primária de qualquer serviço militar.  Acrescentaram que muitos recrutas não iam ser soldados rasos e por isso é que lhes doía mais correr e sofrer as dificuldades da tropa: não tinham o corpo habituado, eram pessoas finas, estudadas. Segundo eles, a recruta era o pior tempo de qualquer soldado.
Enquanto conversavam, despejaram dentro do carro os nossos estendais de flores e mandaram-nos sentar nos bancos corridos dispostos nas laterais do carro, usados na deslocação de tropas. Depois, altearam e prenderam as lonas da parte traseira, pediram à professora que os seguisse e arrancaram. E não houve viagem tão maravilhosa como aquela, o monte de flores contente, elas aos saltinhos umas sobre as outras a meio do veículo, as cores em despique aceso e às cotoveladas, agora fico eu ao de cima; não, tu já lá estiveste na curva anterior, agora sou eu. E nós acolhidos a uma ponta do banco, siameses uns dos outros, um ventinho agradável a levar para trás os cabelos e a colar-nos a roupa ao corpo, os casacos a desabotoar em fuga arrebatada, como se não nos quisessem e preferissem outra pessoa. E nós numa risota pegada de tanta coisa nos ser primeira.
Durante a viagem, cruzámos o desconsolo de campos segados, um fio de restolho a marcar lugar, e montes de feno tão altos que nos lembravam amplas barracas; passámos um lameiro em arremedo de açude, água pouca e escura, uma manada de vacas que espezinhava e bebia em calma patinhice;  passámos vinhas e gente, chapéus de palha debruçados, catando videiras que eram matronas verdes e repolhudas, um tractor parado a meio, impando sob uma pirâmide de cachos. Descontraídos, fizemos adeus a ciclistas que não alçaram a mão, fitos na roda pedaleira, enfronhados em brioso pedalar; saudámos motorizadas cordiais que perdiam terreno connosco, a resfolegar bronquites entumescidas; acenámos à velocidade cautelosa dos automóveis; fizemos efusivos cumprimentos às carroças que evoluíam mansas, a tilintar guizos que o motor dos tropas abafava e demos de caras com  a doçura subordinada dos burros a interrogar-nos estrada fora, pateado maquinal de esquerda-direita, esquerda-direita, esquerda-direita. Mas lançámo-nos em desalmada gritaria e acenos a mãos ambas,  mal reconhecemos a carroça dos leiteiros. À entrada da vila, os avós de Lídia, apeados junto a uma correnteza de casas, faziam uso da sua autoridade profissional: o “meu vizinho” media o leite enquanto a mulher aparava a vasilha que entregava às senhoras ou às empregadas e recebia a paga. Havia naqueles gestos simples a solenidade de uma tribuna, as senhoras e as empregadas, amanhecidas e em jejum, esperavam a distância respeitosa, para não comprometerem a cerimónia. O meu vizinho parecia um mago, tapava e destapava as vasilhas de leite a ajeitar-lhes o pano alvo que evitava as impurezas, em delicadezas e desvelos de quem dá o braço a sua dama. E na carroça só a cauda dos burros dava sinal de si a enxotar o incómodo das moscas que, quem sabe, traziam a passeio.
Foi a primeira vez que vimos alguém de roupão, peça estranha, de que  não sabíamos nome ou propósito e havia de tornar-se um sintoma de Lídia. Mas isso aconteceu mais tarde, quando ambas pensávamos ter esgotado a infância.


Sem comentários:

Enviar um comentário