Apesar
do Luís me fazer caretas cómicas e dar conselhos, apesar de passar na minha
carteira e bater com os nós dos dedos, apesar da coragem que revelava a rir
para mim enquanto o espetavam, nada me demovia o borbotão de lágrimas. Maria Laura,
coragem feita pessoa, animava-me, vais ver, hoje dói-te menos. E eu meia morta
e toda ranhosa. Pressurosa, desabotoava-me o botão do punho esquerdo, vá, faz
como eu, sobe a manga da bata e da blusa. E mostrava-me orgulhosa a brancura do
braço são, roupa alçada até à axila, consegui ajudar com o outro, viste. Lídia, ao
contrário, procedia como se não me soubesse a tendência. Absorvia nos deveres
escolares. E mesmo que a professora, já disse para pararem com o que estão a
fazer, mantinha-se em actividade. Chegada a sua vez, aparecia ao estrado de
manga arregaçada e olhos interessados. Fixava os frascos alinhados dentro das caixas e parecia registar os movimentos
da enfermeira na mistura do pó com o soro e depois na experiência de
experimentar a destreza do líquido a
correr na agulha, como se fosse sua função aprendê-los e lhe coubesse aplicar a
injecção seguinte. Ao invés, eu olhava-a desde que saía do lugar, na esperança
de que me enviasse um sinal ou se igualasse um pouco a mim minorando o meu
desgosto. Mas passava-me ao lado indiferente e não lhe saía um trejeito
enquanto a vacinavam, era como se o corpo lhe fosse exterior, um espécime à sua
responsabilidade.
À
saída, caçoavam-me, foste-te abaixo outra vez, chorincas, eu tinha vergonha se
chorasse nas vacinas...mas estávamos os
três ocupados a comparar o vermelhão nos braços que começavam a inchar e,
passado o aperto do momento, não me ralavam os dichotes. Por vezes, Lídia
olhava-me séria e dizia a ponderar o futuro, se eu fosse antes enfermeira?!
Podia dar-te injecções quando estivesses doente. Eu recusava a ideia com vigor. Abominava pensá-la de mistura com agulhas,
sangue, dor. Além disso, parecia-me que Maria Laura ia ser uma enfermeira de categoria,
era boa de coração e ajudava-me no desenho. No mais fundo de mim receava os
momentos tresloucados de Lídia. Antevia-a em operações de vacinação e temia que
nos atravessasse o braço de um lado a outro com a agulha. Não confiava
inteiramente na minha amiga. Imaginava, e se ela se zanga e nos vacina, e se
depois nos interna no hospital dos malucos, e se nos prende a uma cadeira de
rodas e ficamos lá para sempre. E outras perspectivas cada uma mais macabra que
a anterior. Tantos anos de amizade e não lhe contei os temores infantis. Talvez
porque, a par do seu ar genioso, me foi apontando lugar. Não sempre, que o seu
amor era como ela, um imprevisto. Mas, se me tomava de objecto, era seguro que lhe
sentia a força. Da primeira vez, decidiu que eu teria de a acompanhar a dormir
em casa da professora. Da segunda, veio embrulhado na festa que deslumbrou as
nossas mentes e mobilizou a escola inteira, os festejos da subida da vila a concelho.
Tudo
começou quando a professora suspendeu o nosso quotidiano de cópias ditados e
contas, pediu atenção e postando-se no estrado, bem a meio, contou em gestos a
rebrilhar por via do sol que entrava pela janela e incidia na pulseira e
relógio, que a vila ia subir a concelho e ela ia participar com os alunos. E nós sem a coragem de perguntar o que era
subir a concelho. Na minha mente logo se desenharam as malfadadas escadas e pensei
de imediato em ficar doente nesse dia aziago, ninguém seria capaz de entender
que as minhas pernas me desobedeciam e terminantes, recusavam degraus.
Entretanto, já ela chamara pelo Luís e se abalançara ao armário, retirando ambos
um ror de papel colorido enrolado em rolinhos pequenos com que enchiam os
braços e que depositavam sobre a secretária. Quando a operação terminou, mandou
limpar as carteiras, arrumar tudo dentro das malas, só tesoura, lápis e
borracha à vista. Depois, chamou um por
um à secretária e deu a cada três rolos escolhidos por ela. E nós satisfazendo no desconhecido, contentes por
termos três rolos de papel. Talvez mais contentes
pela expectativa.
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