domingo, 3 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Apesar do Luís me fazer caretas cómicas e dar conselhos, apesar de passar na minha carteira e bater com os nós dos dedos, apesar da coragem que revelava a rir para mim enquanto o espetavam, nada me demovia o borbotão de lágrimas. Maria Laura, coragem feita pessoa, animava-me, vais ver, hoje dói-te menos. E eu meia morta e toda ranhosa. Pressurosa, desabotoava-me o botão do punho esquerdo, vá, faz como eu, sobe a manga da bata e da blusa. E mostrava-me orgulhosa a brancura do braço são, roupa  alçada até à axila, consegui ajudar com o outro, viste. Lídia, ao contrário, procedia como se não me soubesse a tendência. Absorvia nos deveres escolares. E mesmo que a professora, já disse para pararem com o que estão a fazer, mantinha-se em actividade. Chegada a sua vez, aparecia ao estrado de manga arregaçada e olhos interessados. Fixava os frascos alinhados dentro  das caixas e parecia registar os movimentos da enfermeira na mistura do pó com o soro e depois na experiência de experimentar a destreza  do líquido a correr na agulha, como se fosse sua função aprendê-los e lhe coubesse aplicar a injecção seguinte. Ao invés, eu olhava-a desde que saía do lugar, na esperança de que me enviasse um sinal ou se igualasse um pouco a mim minorando o meu desgosto. Mas passava-me ao lado indiferente e não lhe saía um trejeito enquanto a vacinavam, era como se o corpo lhe fosse exterior, um espécime à sua responsabilidade.
À saída, caçoavam-me, foste-te abaixo outra vez, chorincas, eu tinha vergonha se chorasse nas vacinas...mas  estávamos os três ocupados a comparar o vermelhão nos braços que começavam a inchar e, passado o aperto do momento, não me ralavam os dichotes. Por vezes, Lídia olhava-me séria e dizia a ponderar o futuro, se eu fosse antes enfermeira?! Podia dar-te injecções quando estivesses doente. Eu recusava a ideia com vigor.  Abominava pensá-la de mistura com agulhas, sangue, dor. Além disso, parecia-me que Maria Laura ia ser uma enfermeira de categoria, era boa de coração e ajudava-me no desenho. No mais fundo de mim receava os momentos tresloucados de Lídia. Antevia-a em operações de vacinação e temia que nos atravessasse o braço de um lado a outro com a agulha. Não confiava inteiramente na minha amiga. Imaginava, e se ela se zanga e nos vacina, e se depois nos interna no hospital dos malucos, e se nos prende a uma cadeira de rodas e ficamos lá para sempre. E outras perspectivas cada uma mais macabra que a anterior. Tantos anos de amizade e não lhe contei os temores infantis. Talvez porque, a par do seu ar genioso, me foi apontando lugar. Não sempre, que o seu amor era como ela, um imprevisto. Mas, se me tomava de objecto, era seguro que lhe sentia a força. Da primeira vez, decidiu que eu teria de a acompanhar a dormir em casa da professora. Da segunda, veio embrulhado na festa que deslumbrou as nossas mentes e mobilizou a escola inteira, os festejos da  subida da vila a concelho.

Tudo começou quando a professora suspendeu o nosso quotidiano de cópias ditados e contas, pediu atenção e postando-se no estrado, bem a meio, contou em gestos a rebrilhar por via do sol que entrava pela janela e incidia na pulseira e relógio, que a vila ia subir a concelho e ela ia participar com os alunos.  E nós sem a coragem de perguntar o que era subir a concelho. Na minha mente logo se desenharam as malfadadas escadas e pensei de imediato em ficar doente nesse dia aziago, ninguém seria capaz de entender que as minhas pernas me desobedeciam e terminantes, recusavam degraus. Entretanto, já ela chamara pelo Luís e se abalançara ao armário, retirando ambos um ror de papel colorido enrolado em rolinhos pequenos com que enchiam os braços e que depositavam sobre a secretária. Quando a operação terminou, mandou limpar as carteiras, arrumar tudo dentro das malas, só tesoura, lápis e borracha à vista. Depois,  chamou um por um à secretária e deu a cada três rolos escolhidos por ela. E nós satisfazendo no desconhecido, contentes por termos três rolos de papel. Talvez mais contentes pela expectativa.

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