Parámos
numa praça quase vazia onde alguns
homens empoleirados em escadotes se
afadigavam a colocar correntezas de lâmpadas a toda a volta. Desconcertados,
pensávamos nos candeeiros de petróleo de nossas casas enquanto ali, na rua, só
para uma festa, ia haver luz eléctrica. Depois chegámo-nos às lonas levantadas, o soldado deitou-nos um escadote pequeno e o alcatrão
do adro aparou-nos. E logo a professora se fez próxima, figura airosa no seu meneio
de salto alto e chaves a tilintar. Um soldado para o outro tapando a boca com a
mão, mas eu a ouvir na mesma, a flausina tá mesmo no ponto. E o outro a fechar
o escadote, descansa que não a rói dente de soldado – e a dar-lhe uma palmada
nas costas -. Contenta-te com o que deixaste na terra, homem. Depois, cada
um de seu lado e com desembaraço habituado, baixaram os taipais do carro. Entretanto, um
subiu ao atrelado e empurrou todas as flores para o chão. Pareceu-me que elas se ofenderam
um pouco, dado que largaram a fingir desmaios e a dar gritinhos como se estivessem
magoadas quando todos sabíamos que era teatro; não havia palidez que as
apoquentasse, apenas caprichavam em fazer fitas de flor. Ao contrário, no meio do largo, eram um
espectáculo bonito, garriam e cativavam. E nós ao redor, a “tomar conta”,
forçando a nossa importância, estas fui eu que fiz, estas são as da minha avó,
estas foi a vizinha Quitéria que atou. Ainda despicávamos quando uns homens de fato
macaco nos afastaram, agarraram as nossas cordas de flores, e em três tempos,
atravessaram-nas no ar, presas de um lado ao outro nas fiadas de luzes. Além de
nos desviarmos e a bom recato observarmos o trabalho dos homens e o monte de
flores a minguar até desaparecer, nada fizemos. Mas no ar erguia-se um tecto de
flores feito por nós, horas e horas de aplicação em linhas cruzadas e de
encanto singular. Ficámos orgulhosos do nosso trabalho e desejávamos o regresso
para contar na aldeia o que acontecera ao jardim de papel que tanta gente plantara.
Regressámos na hora de almoço, refastelados
num jeep dos militares, contentes e avaros do momento, esquecidos da professora
que deixáramos imersa nos preparativos da festa, desligada de ser mestra, só
uma rapariga bonita e despachada no meio de outras. Mal pusemos pé em terra,
desatámos em corrida até casa, eu e Luís sem comentar as novas, unidos por anseio comum, abrir às mães a caixinha das surpresas e enfeitá-la quanto
podíamos na pretensão de convencê-las ao dia seguinte, o primeiro dia
de feriado no concelho. Mercê da nossa influência, durante a tarde, a aldeia
não falou de outra coisa. E todos se dispuseram a ir à inauguração do concelho. A
aldeia colaborara directamente, éramos importantes, tínhamos trabalhado em prol. Participar era dever, sentíamos a festa como nossa. Contudo,
nenhuma criança sabia ainda o que era “passar a ser concelho”. E também ignorávamos que
o motivo dos adultos era, outrossim, a vontade de tirar a barriga de misérias.
Corria pela aldeia que havia comida a rodos; as herdades tinham enviado bois
inteiros; as instituições e o lavradores tinham doado tractores de fruta, de
pão, azeite, azeitonas e mil alimentos saborosos; as senhoras finas e devotas
da igreja iam fazer bolos e um nunca acabar de doces; constava que havia tanta
comida que tinham pedido as loiças e panelas da tropa e havia mais de uma
dúzia de cozinheiras a trabalhar a todo o vapor; as mesas iam ficar postas a
noite inteira. E tal expectativa fez céleres os mais relutantes
e só não moveu os mortos. Até minha mãe, tão avessa a ajuntamentos, se dispôs a
enfileirar na romagem.
Por
este facto, a aldeia entrou em barrela desbragada por todo o buraco. Retirados ao seu habitual, cães e gatos eram atingidos por água suja de bacias e alguidares, os animais aflitos do desuso, mas que é isto, que toda a gente se lava e não pára no lugar. E o
que não se fez de tarde – durante o dia só avós e doentes quedavam em casa –
deixou-se para a manhã seguinte. A festa era ao fim do dia e toda a gente
combinou palmilhar com alguém os quilómetros que separavam a aldeia da vila. Carreira
e comboio eram para doentes, inválidos ou endinheirados.
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