segunda-feira, 25 de abril de 2016

As Incógnitas Flores de Abril

Há quarenta e dois anos atrás eu tinha dezanove anos, cursava o último ano da Escola Normal do Magistério Primário em Évora e desconhecia tudo sobre regimes políticos. Cria na bondade  do nosso, pensava que a vida era toda igual mundo afora, e os chefes de Estado eram pequenos deuses bondosos (a escassez divina vinha-lhes da inacessível  eternidade); defendiam o país com unhas e dentes, amavam o povo a mais não poder e nunca por nunca o prejudicariam. Politicamente, eu era um zero à esquerda. Jamais ouvira uma palavra sobre presos políticos ou mesmo o uso do termo política. Quando meu pai desabafava nos seus costumados excessos contra Salazar e, por vezes, Américo Tomaz (a quem pouco ligava), e se alongava em gritos de “pendurava-os de cabeça para baixo e o cabelo corto à pedrada” e “punha-os a morrer à míngua”, logo minha mãe na sua voz de brisa cautelosa, “ó homem cala-te, não digas heresias, olha que ainda te levam”. E o meu pai que pouco caso lhe fazia, ria escarninho, alongava os decibéis e mantinha os castigados de cabeça para baixo dias a fio, posição que devia achar o máximo do sofrimento, todos nus, açoitados, apedrejados, cuspidos. Até à morte. Enfim. Uma data de coisas que a meus olhos o tornavam um energúmeno, porque eles, inocentes, não nos faziam senão bem. 
Dado que o carácter do meu progenitor o incluía no número de portugueses exaltados e pouco risonhos, daqueles a quem tudo irrita e faz prurido e que tratamos com luvas para ver se não levanta ondas que nos deixam submersos, nunca entendi o alcance dos receios de minha mãe versando a sua estereofonia ruminativa sobre os nossos governantes. Tomei-a por consequência da sua habitual má disposição que, no que à economia dizia respeito, atirava perdigotos esganiçados obstaculizando a intrepidez de palavras lançadas à velocidade de foguetão ascensional, em promessas de estripar, esventrar, acabar com a raça daqueles que, eventualmente, pudessem enganá-lo, e aproveitava para nos injuriar do que se lembrasse (o paroxismo da ira retirava-lhe vocabulário e tornava-o repetitivo). Aplicava a receita a qualquer compra, venda, troca, e a tudo que envolvesse uma verba por mais curta que fosse. Ou, na sua ausência, um valor. Habituados ao estardalhaço,  não distinguíamos entre razão e desrazão, tudo convertido na rasoura do destempero.

Em setenta e quatro, Salgueiro Maia e os capitães de Abril, hoje meus heróis, pouco me disseram. Não tinha televisão nem energia eléctrica em casa e no colégio onde estava tinhamos sido expulsas do telejornal por mau comportamento. Só entendi a necessidade do golpe de estado de que toda a gente falava quando, uns dias depois, chegaram os presos políticos. Foi nessa altura que comecei a entrever o muito que ninguém me contara, o silêncio imposto, o medo de falar, o asco silencioso à pide. Fui vê-los passar em caravana lenta, quase a passo. E não esqueço a alegria  serena e confiante nos semblantes, os sorrisos tão de infância crente. Creio que é ainda por eles que trato de que não se apaguem realidades tão sofridas e redentoras. Que a memória só vale se for veículo de transmissão. Eles são o chão da nossa democracia. Bem Hajam!

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