Há
quarenta e dois anos atrás eu tinha dezanove anos, cursava o último ano da
Escola Normal do Magistério Primário em Évora e desconhecia tudo sobre regimes
políticos. Cria na bondade do nosso, pensava
que a vida era toda igual mundo afora, e os chefes de Estado eram pequenos deuses
bondosos (a escassez divina vinha-lhes da inacessível eternidade); defendiam o país com unhas e
dentes, amavam o povo a mais não poder e nunca por nunca o prejudicariam.
Politicamente, eu era um zero à esquerda. Jamais ouvira uma palavra sobre
presos políticos ou mesmo o uso do termo política. Quando meu pai desabafava
nos seus costumados excessos contra Salazar e, por vezes, Américo Tomaz (a quem
pouco ligava), e se alongava em gritos de “pendurava-os de cabeça para baixo e
o cabelo corto à pedrada” e “punha-os a morrer à míngua”, logo minha mãe na sua
voz de brisa cautelosa, “ó homem cala-te, não digas heresias, olha que ainda te
levam”. E o meu pai que pouco caso lhe fazia, ria escarninho, alongava os
decibéis e mantinha os castigados de cabeça para baixo dias a fio, posição que
devia achar o máximo do sofrimento, todos nus, açoitados, apedrejados,
cuspidos. Até à morte. Enfim. Uma data de coisas que a meus olhos o tornavam um
energúmeno, porque eles, inocentes, não nos faziam senão bem.
Dado
que o carácter do meu progenitor o incluía no número de portugueses exaltados e
pouco risonhos, daqueles a quem tudo irrita e faz prurido e que tratamos com
luvas para ver se não levanta ondas que nos deixam submersos, nunca entendi o
alcance dos receios de minha mãe versando a sua estereofonia ruminativa sobre
os nossos governantes. Tomei-a por consequência da sua habitual má disposição
que, no que à economia dizia respeito, atirava perdigotos esganiçados
obstaculizando a intrepidez de palavras lançadas à velocidade de foguetão
ascensional, em promessas de estripar, esventrar, acabar com a raça daqueles
que, eventualmente, pudessem enganá-lo, e aproveitava para nos injuriar do que
se lembrasse (o paroxismo da ira retirava-lhe vocabulário e tornava-o
repetitivo). Aplicava a receita a qualquer compra, venda, troca, e a tudo que
envolvesse uma verba por mais curta que fosse. Ou, na sua ausência, um valor. Habituados
ao estardalhaço, não distinguíamos entre
razão e desrazão, tudo convertido na rasoura do destempero.
Em
setenta e quatro, Salgueiro Maia e os capitães de Abril, hoje meus heróis,
pouco me disseram. Não tinha televisão nem energia eléctrica em casa e no colégio
onde estava tinhamos sido expulsas do telejornal por mau comportamento. Só
entendi a necessidade do golpe de estado de que toda a gente falava quando, uns
dias depois, chegaram os presos políticos. Foi nessa altura que comecei a
entrever o muito que ninguém me contara, o silêncio imposto, o medo de falar, o
asco silencioso à pide. Fui vê-los passar em caravana lenta, quase a passo. E
não esqueço a alegria serena e confiante
nos semblantes, os sorrisos tão de infância crente. Creio que é ainda por eles
que trato de que não se apaguem realidades tão sofridas e redentoras. Que a
memória só vale se for veículo de transmissão. Eles são o chão da nossa
democracia. Bem Hajam!
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