segunda-feira, 11 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

 No dia seguinte, apesar da pouca atenção que dávamos a bebés, enchemos Lídia de perguntas sobre a sobrinha. Queríamos desviá-la, reter-lhe o entusiasmo na criança fazendo-a esquecer que não podia acompanhar-nos. Em mudo acordo, temendo zanga ou tristeza, eu e Luís não aflorámos o assunto e empenhámo-nos em dar guita à novidade familiar. Mas a dada altura, olhou-nos de alto e resmungou, não me dizem nada, se calhar pensam que eu não sei que vão os dois com a professora. Depois alteou o seu nariz de embirrância e atirou, parvos, pensam que vão fazer o quê, vão é trabalhar; não me importo, quero lá saber, fico a tomar conta da menina, que é muito melhor. E adiantou caminho. Como se nós escravos e ela senhora.
Depois, faltou à escola por uns dias e poupou-nos  a mais embaraço. Em mim, a certeza da sua inveja engasgava, era pedra a pesar. Mas, apesar do sentimento que remoía, eu conhecia a sequência, sabia que Lídia havia de negá-lo até ao infinito. A mãe dizia dela, teimosa que nem uma mula, capaz de fazer das tripas coração só para levar a sua avante. E eu, debaixo dos seus olhos de insolência e por dentro da insurrecta teimosia, esforçava-me para não a magoar. Porque a gostava. Mas também porque a admirava e reconhecia; ou porque as relações amistosas me eram mais agradáveis e temia as suas incursões bélicas que fertilizavam por mim adentro  e abriam em invariável ferida. Era como se, a cada discussão, ela entrasse de faca em punho e eu só desconhecesse o lugar onde desferia o golpe. Por vezes, Lídia acendia-me os alertas e sabia pôr-me em estado de sítio.

Mas na véspera da subida a concelho, frente ao enorme carro da tropa parado à beira da escola, tudo se nos varreu. Em casa, as mulheres que não trabalhavam ao campo respingavam de preparativos e agradeceram o dia sem horário escolar. Aproveitaram para arejar e passar camisas e fatos, engraxar sapatos, preparar gravatas e chapéus de homem, banhar os garotos e fazer a barrela. E nós, os oito escolhidos, prostrados na admiração simpática dos tropas que só víamos diariamente a correr em formatura, estrada abaixo e acima, suados e exaustos, a mando de um chefe mal disposto  que lhes gritava impropérios. Seguiam em passo de corrida que atroava no alcatrão, as velhas na beira de estrada a benzerem-se condoídas, coitadinhos, olha como eles estão. E depois olhavam-lhes as botas que largavam lama a cada passo, vêm todos sujos, aquele coiro deve-os ter obrigado a entrar nalguma vala cheia de águas podres. E envolvendo o corno branco que traziam atado ao pescoço, rogavam-lhe vingativas pragas. Se as crianças davam costas, elas com mão de sinaleiro, esperem, ainda faltam os do atraso. Os mais inábeis chegavam depois, sem garbo e a passo descomposto, moídos de desalento.  Nos olhos, boiava-lhes a tragédia solitária de quilómetros por andar que o deus-dará da arma sublinhava. Seguiam mudos, passeio fora, a confrontar-se com a teimosia de alça insegura, o peso da arma caindo da  lassidão do ombro para o braço esmorecido. Mas eram os preferidos, a desgraça sempre se irmana; havia nas mulheres um desejo de ajudar que as contentava e era degrau, situava-as acima da miséria deles. Diziam aos netos, vai lá buscar um copo de água, traz a carcaça que está dentro do saco do pão. Certa vez, um soldado coxeava de tal modo que se sentou no valado à beira da estrada, poisou a arma e, com dificuldade, descalçou as botas. Aqui e ali, o sangue abria rosetas na brancura dos pés. As tias velhas curaram-no misturando exclamações piedosas e mercúrio passado nas feridas com uma pena de galinha, enquanto a  força do imaginário infantil trabalhava na pele tocada por tal suavidade, ignorando dor e carne viva. De seguida, entraparam-no com pedaços limpos de rodilha. Para a carne viva não bater nas botas, diziam. Mas quando o pobre tentou calçar-se, não lhe cabia nas botas o inchaço dos pés pensados. E as velhas desfizeram o curativo. Então, o Luís ajudou-o a calçar e a levantar-se, enquanto as tias desviavam olhos lastimosos e sopravam para dentro, fsfsfsfssss.... . O meu amigo carregou-lhe a arma e foram-se afastando devagar.  Cá atrás, as velhas choravam-no longamente, amaldiçoando a tropa e rezando por cura rápida e castigo suave. Junto à curva, pararam os dois e o soldado esvaneceu, enquanto o Luís ficava maior, maior, até ser ele e estar junto de nós a ofegar. E ainda as tias num murmúrio, a limpar lágrimas à ponta do lenço de cabeça, coitadinho, mal sabe ele o castigo que o espera. E depois voltavam,  como é que vai chegar ao quartel, tem os pés que nem os do crucificado (e repetiam o sinal da cruz). E o Luís ao meu ouvido, não digas a ninguém, mas ele ia a chorar que eu vi.

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