Retorqui-lhe
coisas palermas de que me lembrei e não faziam qualquer efeito como, tens que
ter, sou madrinha dos teus filhos. Ou, já escolheste os nomes, não te lembras.
E ela convicta, a abanar a cabeça em negação reiterada, por entre soluços e
caça-rapazes espontâneos que lhe estremeciam na testa e junto à face num apego
gracioso, não namoro... não me caso... não tenho filhos.... Estendi-lhe o trapo
já molhado, olhou-o displicente e limpou-se na sujidade da manga, deixa, não é
preciso. E tirou-me a mala da mão. Ainda sem compreender, tartamudeei, o que é que
foi. E ela voltou-se como uma fera e apostrofou como se eu fosse a exclusiva culpada e estivesse safa de
complicações, foi que a minha irmã andou dois dias a gritar com dores e eram
gritos de aflição. Fui lá e vi-a, não dormiu duas noites e dois dias inteiros,
Bia. Parecia que ia morrer. Tu sabes que mijar não custa, mas olha que é pela
passarinha que os bebés saem, já viste o que deve doer?. Disse-mo assim, de
chofre. E pôs-se a olhar para mim feita pítia oracular, toda imbuída em
estranheza e compenetração. E eu aparvalhada, a mente numa desfilada confusa, a
tentar integrar os dados novos, imaginando horrorizada os interstícios daquela
verdade. A novidade foi tão aguda que me trespassou e senti mirrar as carnes. Um
calafrio percorreu-me o corpo e tive saudade ao tempo de bebés vindos de Paris,
não me apetecia saber mais, as verdades adultas que esperassem. Mas não fiz um
gesto. E nem Lídia esperava resposta. Em
parte porque a confidência lhe aliviava dor e estupefacção próprias, em parte
por verificar que o poder das suas palavras sobre mim lhe dava supremacia,
continuou, a parteira velha não se
entendeu com ela, cá para mim não sabe nada de nada. Primeiro mandou-a andar “para desenvolver”, vê
lá bem que andou dois dias inteirinhos “a desenvolver”. Depois, com o aperto
das dores ela já não era capaz de andar e só gritava. Foi quando a deitou na
cama e já não me deixaram ver mais nada. E olha, daí a umas horas o sangue que havia nos lençóis era uma poça
comprida e, de certeza, já estava o lençol todo molhado em volta dela que eu
bem vi como a cama ficou. Aí a minha mãe assustou-se, deu um encontrão na velha
e mandou o meu pai à loja do Telha para chamar a ambulância. A minha irmã
estava branca como a cal das paredes, disse a minha mãe – e rematou com raiva e
desgosto -. É uma merda ser mulher, Bia; o meu cunhado andava lá aflito, mas
não lhe doía nada. Depois do desabafo sossegou um bocadinho e raciocinou, como
é que a gente não pensou nisto Bia, somos mesmo muito parvas, então os filhos
saíam cá de dentro e não doía?! Enquanto ela descarregava aquela tristeza enraizada – as tristezas e dissabores de Lídia eram assim, cheios de raiva e
raízes fundas que eu não entendia – eu primeiro aterrorizei, os pêlos de pernas
e braços num dramatismo erecto e involuntário. Mas de seguida me impus
imaginar alternativas que nos extirpassem àquele calvário conservando as
festas de baptizado, os nomes escolhidos, o parentesco que encontráramos para
ser família uma da outra. Lancei-lhe, e se comprássemos um. Deve haver pessoas
que vendem bebés...e ela já na passada habitual, a gente depois pensa as duas que é melhor.
Depois voltou-se para mim e garantiu, digo-te uma coisa, Bia, juro que ninguém me apanha atrás da tua barraca outra
vez. E depois meio intrigada, tu achas que Deus me guardou?! E eu tão crédula
como ela, se calhar foi o teu anjo da guarda. E entrámos na escola compenetradas
da invisível protecção, completamente
esquecidas do que fossem as benesses ou a subida a concelho.
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