segunda-feira, 4 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Retorqui-lhe coisas palermas de que me lembrei e não faziam qualquer efeito como, tens que ter, sou madrinha dos teus filhos. Ou, já escolheste os nomes, não te lembras. E ela convicta, a abanar a cabeça em negação reiterada, por entre soluços e caça-rapazes espontâneos que lhe estremeciam na testa e junto à face num apego gracioso, não namoro... não me caso... não tenho filhos.... Estendi-lhe o trapo já molhado, olhou-o displicente e limpou-se na sujidade da manga, deixa, não é preciso. E tirou-me a mala da mão. Ainda sem compreender, tartamudeei, o que é que foi. E ela voltou-se como uma fera e apostrofou como se eu fosse a exclusiva  culpada e estivesse safa de complicações, foi que a minha irmã andou dois dias a gritar com dores e eram gritos de aflição. Fui lá e vi-a, não dormiu duas noites e dois dias inteiros, Bia. Parecia que ia morrer. Tu sabes que mijar não custa, mas olha que é pela passarinha que os bebés saem, já viste o que deve doer?. Disse-mo assim, de chofre. E pôs-se a olhar para mim feita pítia oracular, toda imbuída em estranheza e compenetração. E eu aparvalhada, a mente numa desfilada confusa, a tentar integrar os dados novos, imaginando horrorizada os interstícios daquela verdade. A novidade foi tão aguda que me trespassou e senti mirrar as carnes. Um calafrio percorreu-me o corpo e tive saudade ao tempo de bebés vindos de Paris, não me apetecia saber mais, as verdades adultas que esperassem. Mas não fiz um gesto. E nem Lídia esperava resposta.  Em parte porque a confidência lhe aliviava dor e estupefacção próprias, em parte por verificar que o poder das suas palavras sobre mim lhe dava supremacia, continuou,  a parteira velha não se entendeu com ela, cá para mim não sabe nada de nada.  Primeiro mandou-a andar “para desenvolver”, vê lá bem que andou dois dias inteirinhos “a desenvolver”. Depois, com o aperto das dores ela já não era capaz de andar e só gritava. Foi quando a deitou na cama e já não me deixaram ver mais nada. E olha, daí a umas horas  o sangue que havia nos lençóis era uma poça comprida e, de certeza, já estava o lençol todo molhado em volta dela que eu bem vi como a cama ficou. Aí a minha mãe assustou-se, deu um encontrão na velha e mandou o meu pai à loja do Telha para chamar a ambulância. A minha irmã estava branca como a cal das paredes, disse a minha mãe – e rematou com raiva e desgosto -. É uma merda ser mulher, Bia; o meu cunhado andava lá aflito, mas não lhe doía nada. Depois do desabafo sossegou um bocadinho e raciocinou, como é que a gente não pensou nisto Bia, somos mesmo muito parvas, então os filhos saíam cá de dentro e não doía?! Enquanto ela descarregava aquela tristeza enraizada – as tristezas e dissabores de Lídia eram assim, cheios de raiva e raízes fundas que eu não entendia – eu primeiro aterrorizei, os pêlos de pernas e braços num dramatismo erecto e involuntário. Mas de seguida me impus imaginar alternativas que nos extirpassem àquele calvário conservando as festas de baptizado, os nomes escolhidos, o parentesco que encontráramos para ser família uma da outra. Lancei-lhe, e se comprássemos um. Deve haver pessoas que vendem bebés...e ela já na passada habitual, a gente depois pensa as duas que é melhor. Depois voltou-se para mim e garantiu, digo-te uma coisa, Bia, juro que  ninguém me apanha atrás da tua barraca outra vez. E depois meio intrigada, tu achas que Deus me guardou?! E eu tão crédula como ela, se calhar foi o teu anjo da guarda. E entrámos na escola compenetradas da  invisível protecção, completamente esquecidas do que fossem as benesses ou a subida a concelho.

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