Minha
mãe desviou um pouco a sua cadeira, puxou outra, pô-la na sua frente e
sentei-me com o único pensamento que sabia sobre prisões, os homens maus eram
presos, os bons não iam para a prisão. Ela pareceu adivinhar-me e disse em voz
baixa mas convicta, a fixar-me os olhos, o pai não é um homem mau. Não roubou
nada a ninguém. E não fez nada de mal, filha. Não duvidei. Mas a pergunta veio
natural, por que razão o tinham prendido. Minha mãe silenciou por uns minutos,
como se a questão fosse extensa e precisasse de espaço para cair toda junta, ou
fosse o comboio das onze, de que fazia parte a carruagem-correio e que nunca
mais terminava de passar, uma carruagem, e outra, e outra, e ainda mais tantas
depois; e nós concentrados no seu rodado de bielas cada vez com mais pressa,
oito, nove, dez, onze, doze....Pareceu-me que minha mãe estava a alinhar
carruagens, a esperar que passassem todas para dizer alguma coisa sobre o
comboio e o destino que levava. E quando começou a falar, fui entendendo que o meu
pai, a seu modo, também era diferente dos pais dos meus amigos. Avisou-me que
não voltava a ter uma conversa daquelas comigo por ser perigosa para todos e fez-me
prometer que não falava dela a ninguém. Nessa manhã de sol, soube que o avô de
Lídia não tinha ido à vila por acaso, mal lhe chegou notícia do sucedido a meu
pai, correu a buscar-nos; soube que o meu pai lutava pela liberdade desde jovem
e andava debaixo das suspeitas da Guarda e dos pides que eram a polícia
política. À minha interrogação muda, a mãe contou que os pides eram pessoas
normais que não se distinguiam da outra gente, não usavam farda, tinham a sua família e o seu
emprego que todos conheciam e ninguém sabia que eram pides, aquele ordenado era
um extra, só eles é que sabiam que o recebiam. Podiam mesmo ser qualquer pessoa
que conhecíamos e da nossa confiança; essa gente era paga pelo governo para
espiolhar e, se encontrasse alguém a falar contra os governantes, apresentava a queixa e o mal falante era preso por causa da política. Quando perguntei se o
pai estava preso na vila as lágrimas voltaram a correr e ela a assoar-se, não
filha, eles são presos especiais, estão em prisões especiais. Como a agarrar
uma luz, a minha cabeça pensou, se são prisões especiais, tratam-nos
bem, só não os deixam sair. Entretanto, minha mãe foi avisando que não
respondesse a perguntas. Fosse quem fosse que perguntasse, eu não sabia dele. O
meu pai tinha desaparecido. Enquanto me dava o pequeno almoço, eu, intrigada de
tanta novidade que não acomodava na mente, perguntei, às dentadas na
torrada, o que era liberdade e política. Ela olhou-me e disse devagar, a colher
dentro da caneca a mexer-me o açúcar num ritmo cadenciado, tiiii...tiii...tiiii,
não sei bem, filha. O que a mãe sabe é que os homens e as mulheres como o pai só
querem uma vida melhor para quem não tem nada e é escravo do trabalho toda a
vida. E querem poder dizer isto em voz
alta. Eles querem melhorar a vida de toda a gente que é pobre. Olha, filha, não
sei se o que eles querem é liberdade ou política, ou se juntam as duas coisas,
mas sei que lutam por nós e isso é uma coisa boa e muito corajosa. Nesse
momento de café com leite, o meu pai, que sempre me fora figura estranha e
ausente, foi guindado a herói, qualidade compatível com estranheza e ausência.
Mas entristeci por não poder gabar-me daquele pai descoberto à mesa da manhã. Prometera.
E, em minha casa, as promessas eram juramento sagrado.
No
dia seguinte, voltei à escola. Lídia e Luís, que me supunham doente, não me
esperaram. Nas voltas do caminho, quanto mais pensava no meu pai, maior era o
número de questões sem resposta. Mesmo para mim, que via a vida a preto e
branco, havia muitas gradações: de pretos; de brancos; de cinzentos. Perguntava-me
como é que o avô de Lídia sabia do meu pai e a minha mãe não; por que é que me
tinham dito que os guardas eram bons, se tinham sido capazes de prender o meu
pai que não fizera mal a ninguém; por
que é que tinham prendido o meu pai no dia da festa, o que estaria ele a fazer;
quem seria o pide que andou atrás do meu pai, seria alguém da taberna, alguém
da minha família, um vizinho... Mas o mundo não se apieda de mentes infantis.
Mal cheguei à escola, logo alguns garotos se afastaram a desdenhar,
comunista!... perguntei a estranhar a palavra, o quê?, e eles a repeti-la, como
a atirar-me à figura um bocado de esterco, comunista. És filha de um comunista,
tu. Lídia veio correndo e pegou-me na mão a afastar-me, não faças caso, são uns
parvos. Eu atarantada com a palavra nova, o que é que é comunista, tu sabes?
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