quinta-feira, 21 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

Minha mãe desviou um pouco a sua cadeira, puxou outra, pô-la na sua frente e sentei-me com o único pensamento que sabia sobre prisões, os homens maus eram presos, os bons não iam para a prisão. Ela pareceu adivinhar-me e disse em voz baixa mas convicta, a fixar-me os olhos, o pai não é um homem mau. Não roubou nada a ninguém. E não fez nada de mal, filha. Não duvidei. Mas a pergunta veio natural, por que razão o tinham prendido. Minha mãe silenciou por uns minutos, como se a questão fosse extensa e precisasse de espaço para cair toda junta, ou fosse o comboio das onze, de que fazia parte a carruagem-correio e que nunca mais terminava de passar, uma carruagem, e outra, e outra, e ainda mais tantas depois; e nós concentrados no seu rodado de bielas cada vez com mais pressa, oito, nove, dez, onze, doze....Pareceu-me que minha mãe estava a alinhar carruagens, a esperar que passassem todas para dizer alguma coisa sobre o comboio e o destino que levava. E quando começou a falar, fui entendendo que o meu pai, a seu modo, também era diferente dos pais dos meus amigos. Avisou-me que não voltava a ter uma conversa daquelas comigo por ser perigosa para todos e fez-me prometer que não falava dela a ninguém. Nessa manhã de sol, soube que o avô de Lídia não tinha ido à vila por acaso, mal lhe chegou notícia do sucedido a meu pai, correu a buscar-nos; soube que o meu pai lutava pela liberdade desde jovem e andava debaixo das suspeitas da Guarda e dos pides que eram a polícia política. À minha interrogação muda, a mãe contou que os pides eram pessoas normais que não se distinguiam da outra gente,  não usavam farda, tinham a sua família e o seu emprego que todos conheciam e ninguém sabia que eram pides, aquele ordenado era um extra, só eles é que sabiam que o recebiam. Podiam mesmo ser qualquer pessoa que conhecíamos e da nossa confiança; essa gente era paga pelo governo para espiolhar e, se encontrasse alguém a falar contra os governantes, apresentava a queixa e o mal falante era preso por causa da política. Quando perguntei se o pai estava preso na vila as lágrimas voltaram a correr e ela a assoar-se, não filha, eles são presos especiais, estão em prisões especiais. Como a agarrar uma luz, a minha cabeça pensou, se são prisões especiais, tratam-nos bem, só não os deixam sair. Entretanto, minha mãe foi avisando que não respondesse a perguntas. Fosse quem fosse que perguntasse, eu não sabia dele. O meu pai tinha desaparecido. Enquanto me dava o pequeno almoço, eu, intrigada de tanta novidade que não acomodava na mente, perguntei, às dentadas na torrada, o que era liberdade e política. Ela olhou-me e disse devagar, a colher dentro da caneca a mexer-me o açúcar num ritmo cadenciado, tiiii...tiii...tiiii, não sei bem, filha. O que a mãe sabe é que os homens e as mulheres como o pai só querem uma vida melhor para quem não tem nada e é escravo do trabalho toda a vida.  E querem poder dizer isto em voz alta. Eles querem melhorar a vida de toda a gente que é pobre. Olha, filha, não sei se o que eles querem é liberdade ou política, ou se juntam as duas coisas, mas sei que lutam por nós e isso é uma coisa boa e muito corajosa. Nesse momento de café com leite, o meu pai, que sempre me fora figura estranha e ausente, foi guindado a herói, qualidade compatível com estranheza e ausência. Mas entristeci por não poder gabar-me daquele pai descoberto à mesa da manhã. Prometera. E, em minha casa, as promessas eram juramento sagrado.

No dia seguinte, voltei à escola. Lídia e Luís, que me supunham doente, não me esperaram. Nas voltas do caminho, quanto mais pensava no meu pai, maior era o número de questões sem resposta. Mesmo para mim, que via a vida a preto e branco, havia muitas gradações: de pretos; de brancos; de cinzentos. Perguntava-me como é que o avô de Lídia sabia do meu pai e a minha mãe não; por que é que me tinham dito que os guardas eram bons, se tinham sido capazes de prender o meu pai que não fizera mal a ninguém;  por que é que tinham prendido o meu pai no dia da festa, o que estaria ele a fazer; quem seria o pide que andou atrás do meu pai, seria alguém da taberna, alguém da minha família, um vizinho... Mas o mundo não se apieda de mentes infantis. Mal cheguei à escola, logo alguns garotos se afastaram a desdenhar, comunista!... perguntei a estranhar a palavra, o quê?, e eles a repeti-la, como a atirar-me à figura um bocado de esterco, comunista. És filha de um comunista, tu. Lídia veio correndo e pegou-me na mão a afastar-me, não faças caso, são uns parvos. Eu atarantada com a palavra nova, o que é que é comunista, tu sabes?

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