domingo, 10 de abril de 2016

"No Tempo da Escola"

No dia seguinte, pusémos entre parentesis preocupações quotidianas. Ninguém abordou o estudo de lições, os trabalhos de casa, as tabuadas por saber. Esquecemos mesmo os jogos habituais, o sádico rodado de piões suseranos e em gume que, por entre apupos e incentivos  galavam os mais fracos marcando-os em aleijões de perversão, cada um transferido para o brinquedo, a levar e a dar, a sofrer na pele os dichotes e a infligi-los até à morte por inércia natural ou provocada. Não jogámos o elástico surripiado às cestas de costura maternas e ficámos em grupinhos a antever o futuro, os elásticos em admiração ao desusado, a fazer beicinho, não nos querem. Olvidámos sovas e dissabores caseiros que mostrávamos uns aos outros como feridas de batalha, olha o que me fez, apalpa aqui, qualquer dia ainda me cega e depois vai preso.
O raciocínio apossara-se de nós, tomara conta da esperança engalanada no dia anterior e dissolvia-a em realidade adversa, retirava-lhe as cores uma a uma. A razão, que umas vezes repele e outras atrai, enviesava-nos as ideias. Ensimesmados no caminho que esperava os eleitos por um ditado metódico, antevíamos o pesadelo de vários quilómetros a carregar tanta flor de papel. Os mais inventivos atreviam-se a propor técnicas que passavam de grupo em grupo adendadas de sugestão e não serviam a ninguém. O excesso vergava-nos, a certeza de tarefa incomportável mantinha-nos cabisbaixos. E, enquanto eu desistia mentalmente, sem saber como  dizê-lo à professora, a maioria das crianças arrefecia na aspiração. Quando o automóvel se aproximou da escola, mais temíamos do que desejávamos ouvir pronunciar o nosso nome, desejávamos um erro inadvertido a eliminar-nos. E eu acendia a ténue esperança de ser derrotada pela caligrafia.
            Na azáfama de nos tornarmos viáveis no transporte das flores, nem dera pela ausência de Lídia. Quando a professora fez a chamada, Luís respondeu sério, minha senhora ela hoje falta, vai ver a sobrinha ao hospital. Voltei-me inquisitiva e os olhos dele um lago: correu tudo bem. Subiu-me um fundo de remorso por tê-la esquecido, mas abafei-o na ansiedade de saber que a professora ia chamar-me para carregar um ror de flores estrada acima. Disse para mim que tinha coisas importantes a tratar, que ela estava bem, que também não ia lembrar-me naquele dia de diferença que incluía um hospital, uma sobrinha, quem sabe, médicos de verdade. Mas o meu fundo não se calava, é tua amiga, como é que a esqueceste. E enquanto embebia neste conciliábulo de mim comigo, a professora começou a divulgar os seus acompanhantes e disse-me o nome. Maria Laura acotovelou-me e ciciou com uma pontinha de inveja, foste tu que ganhaste mais o Luís. Alquebrei de imediato, sabendo-me incapaz de tanto carrego e sem coragem de me chegar à secretária para a verdade ou uma mentira que fosse. Pensei no Luís e em Lídia, tudo os fazia mais fortes e ousados que eu. Luís era cheio de expedientes e boas ideias. No dia em que, por castigo,  a professora mandara fazer cinquenta cópias de uma página cada, com abecedários data e nome, ele deitara-se ao trabalho, o despertador à frente do caderno e do livro. e foi o único a cumprir tão selvático castigo, a salvo da fervura da régua. Não animei a estes pensamentos. Eu não era Luís nem Lídia. Cogitei que poderia faltar à escola nesse dia. Mas havia um contra: tinha uma pena enorme de não aproveitar o passeio, balançava entre o carrego impossível e a minha vontade de participar naquela alegria de novidade. Fiquei a matutar sem conclusão segura até ao intervalo, enquanto a professora bla, bla, bla, desfazia dúvidas e clareava ideias acerca da manhã em que a maioria ficava em casa e alguns iam de visita especial à vila.
Em todas as idades os homens constroem os seus equilíbrios temporais, os períodos de descanso a contrabalançar e regular o trabalho. O mesmo acontece com as crianças: as tarefas escolares equilibram com os intervalos. Facto que só entendi quando entrei na escola. Antes, quedava-me esbugalhada face à barulheira de cada intervalo, garotos em ondas de braços e pernas e as tias velhas num meio sorriso, parecem touros desembolados. Talvez hoje não seja igual, já não exista a evasão alegre e barulhenta da  liberdade, mas quero crer que os intervalos são o espaço vital onde a infância busca a força que falta. A verdade é que saíamos da escola em dois tempos distintos. Até à porta, éramos  pausados e ordeiros; mal púnhamos o pé no pátio, desatávamos a ser outros, mordia-nos não sei que bicho e deitávamos a correr como se fossemos salvar vidas. Esse movimento espontâneo reintroduzia-nos na infância, reapossámo-nos nele, era o nosso modo de cavar distância entre intervalos e períodos de trabalho. Um movimento salvífico. Nessa manhã, Luís, em vez de se dirigir para o pátio dos rapazes, veio andando, calmo, na minha direcção e perguntou, já andaste num carro da tropa?. Olhei-o sem compreender, o quê? E ele, nunca andaste, pois não, eu também não, mas estou desejando. E afastou-se em corrida desabalada.

Só no intervalo do almoço perguntei  como é que se ia arranjar para andar num carro da tropa. Ele olhou-me meio trocista e, bem me parecia que não estavas a ouvir nada; a professora disse que um carro da tropa vem buscar as flores e a gente. 
Pasmei de contentamento.  

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