É
provável que tenha escapado do pisoteio por acaso e o pavor me tenha posto a
salvo na reentrância esquinada do muro. As
crianças salvam-se por não sofrerem o perigo como os adultos. Ou nem o aperceberem. Ou porque um anjo
lhes guarda a inocência. O que me preocupou deveras foi faltar-me um sapato,
ter perdido a malinha com o lenço de assoar e estar sozinha, invisível no meio
de tanta gente. Já lacrimejava quando senti uma mão a tocar a minha. Virei-me e,
no meio da hecatombe, não sei porquê nem como, Lídia sorria-me a um passo; nos
olhos, um fundo de ternura acamava a troça de me ver chorar. Fez-me sinal e avançámos
no sentido inverso ao da multidão, cosidas ao muro, um pé à frente do outro,
com recuos que quase nos faziam perder uma da outra e agora me divertiam. A festa do conselho estreou-me na visão daquele ser
animal e primitivo que vida fora me assustou e, de vez em quando, invade a
paisagem humana em nu integral, semi erecto, todo pêlos e mandíbula, a
ferocidade como arma. Enlouquecidas, as pessoas pareciam outras. Não eram já as
do caminho paciente, os namoros a começar, os transeuntes enfeitados que
esperavam os discursos e cobiçavam o repasto, os ouvintes inquietos por devorar
iguarias. Eram animais hiantes em busca do sustento que lhes garantia a vida.
Uma fúria nascida do colectivo e da circunstância dizimava as mesas. Pelas
frestas, e enquanto tentávamos afastar-nos, reparei que ninguém mastigava ou
levava à boca qualquer alimento. As pessoas roubavam as iguarias, varriam-nas em presteza incomum. Tudo servia para açambarcar, bolsos, carteiras,
coletes, sacos de plástico, ou apenas as mãos. Por entre um montão de pernas e
saias vislumbrei chapéus de palha que sugavam indiscriminados alimentos, sandes,
pires de presunto, bolos, rebuçados. Sombrinhas que abertas tinham aparado o
sol do caminho, fechadas faziam de saco e opavam de frangos assados, bolos e tartes atirados
a trouxe-mouxe, a desmacharem em flocos e que sairiam em papa daquele aperto de varetas e gente. Cada um que se chegasse, subtraía, célere, os alimentos
ao seu alcance. Dos tropas que antes seguravam a multidão não havia sinal. A contragosto ou de vontade, misturavam na massa humana. No nosso passeio de ir em frente e volta atrás desviámo-nos de
brigas masculinas pela posse de uma garrafa de licor que se espatifava antes
que os contendores dessem por isso, de mulheres que puxavam a mãos ambas por
bolos que tombavam do prato e eram
calcados pela multidão ou se desmanchavam sobre alguém que ficava a recolher
bocados do pescoço, e de cima dos ombros, lambendo-se, pouco importado com a
sujidade.
Quando
chegámos ao fim do muro as pessoas já desertavam das mesas. Teriam passado uns quinze
minutos. Aproximámo-nos de um canto e constatámos que eram mesas
corridas, dispostas em U. Um U enorme. Dava a volta ao largo. Olhámos as duas na
esperança de um rebuçado, um bolo, uma sandes. Não havia nada sobre aquele U
tão grande. Nada. Um senhor parou perto de nós, meteu mão ao bolso, tirou
dois rebuçados doutor Bayard e disse, tomem,
estes são dos meus, trouxe-os de casa. Isto
foi uma vergonha, acrescentou tristonho. E partiu em acenos de desaprovação. Ainda
não refeitas da devassa, passa um homem a correr com uma ossada de boi às
costas, o sangue do animal a manchar-lhe a camisa, boca e dentes a escorrer. Enojada, cheguei-me a Lídia. E ela contrafeita, aquele boi não prestava, a carne
estava toda crua, não viste os ossos. Mas eu que só tinha visto o homem a pingar sangue, sorriso alvar e dentes
vermelhos como um drácula, arrepiei-me, vamos embora senão ele volta.
Desconhecia
que horas eram. Ignorava o caminho de
casa. Estava esfomeada. Não sabia de minha mãe. Tinha esquecido as tias.
Mas, como sempre, confiava em Lídia. Na sua descontracção habitual e chupando o
rebuçado, contou-me que o avô nos esperava. E eu achei natural e perguntei se
minha mãe estava com ele. Mas à negativa que me deu, refilei, não saio daqui, a
minha mãe vem-me buscar de certeza. E de novo comecei a refazer o caminho
colada ao muro, Lídia atrás a resmungar. Lá bem na ponta, vislumbrei minha mãe
de pé, quieta. Lancei-me a correr coxeando por entre as pessoas e atirei-me nos
seus braços a soluçar quanto podia. Ela teve-me assim por um bocadinho, assoou-me,
limpou-me os olhos e pôs-me no chão, vamos para casa, filha; não devíamos ter
vindo. Lembrei-me de súbito, e as tias. E ela séria, deixa-as, não se perdem,
vamos com o avô da Lídia. Demos as mãos e fomos as três. Abríamos caminho por entre o desalento da maioria que se aprestava, como nós, a regressar a penates de estômago vazio e a gravidez acintosa de sacos plásticos que intrometiam, chapéus de palha informes e semi escondidos por casacos, guarda chuvas em elevação de braços, sôfregos da mercadoria. Lá à frente, o brasido ainda avermelhava. Mas os cozinheiros, boné desalentado na mão, passeavam o rubor de horas rentes a lume esperto, um esgar às mesas vazias, cabelo ainda colado à testa e a enxugar suores no amachucado do barrete que pretendiam lhes varresse o aborrecimento do trabalho interrompido, nem deixaram a gente acabar de assar os animais, pareciam cães esfaimados, eu nunca tinha visto coisa assim. E na tribuna, ninguém. Que no ardor da operação, a guarda tinha transportado as autoridades para o salão, ainda assim o povo não começasse com ideias. Da viagem na carroça, nada sei. Encostada a minha mãe, adormeci mal os balanços do carro começaram e deve ter-me
carregado no colo, despido e enfiado na cama.
No
dia seguinte, abri os olhos e fiz como sempre, lancei uma olhada à cama de meus pais no jogo habitual de verificar se
acordara primeiro que eles. Mal os olhos lhe bateram, a muda de roupa gritou-me de cima da cama. Estava ainda no mesmo sítio, num despropósito alinhado. Lembrei-me de repente que meu pai não aparecera na festa. Dei um pulo da cama e saltei para a cozinha. Minha mãe estava sentada à mesa. Muito
quieta, mãos sobre o rosto. Chorava. As lágrimas borbulharam-me, perguntei em
voz insegura, o pai. E minha mãe em tristeza balbuciada, prenderam o pai, filha.
Hoje faltas à escola. Temos de ter uma conversa, anda cá.
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