Ravena é uma cidade calma, transpiração de séculos
que o turista inspira de vontade. No centro, as ruas plantam-se em gestos de
pedra secular que o quotidiano perpetua, vazio de exacerbadas vaidades. Ruas de
Ravena são caminhos de lentidão viajante, que detêm e conduzem a interiores
oníricos e perpétuas desilusões (os italianos são assim, fazem-se pagar por
seus tesouros, mesmo se tesouros pobres). A urbe tem o toque dos lugares onde
se vive e convive: acolhe e assimila. É ser de alma própria que o mundo
estrangeiro não perturba e a ambiência cativa. Não que os
ravenos sejam de extraordinária simpatia para com os turistas, mas amortizam o
estranho de cada um. Longe das multidões de Florença, Veneza ou qualquer dos
lugares à beira Garda, nada ali é invasivo. Há nela um provincianismo pacífico
que alicia, feito apetite em botão para morar e fazer ninho. Quem sabe, seja efeito
da enchente de luz a cair sobre o antigo das pedras; ou do afago dos gelados
sobre o gosto; ou mesmo da cancela erguida sobre a passagem de nível da via
férrea, a lembrar-nos tempos de Portugal. Quem sabe, Ana Garibaldi encoraja,
nariz no ar e peito feito, desafiando a liberdade dos homens a mostrar-se pelos
séculos. Ou será dos muitos africanos perdidos por seus jardins e avenidas,
arrimados uns aos outros, irmandade de infortúnio calado. Telemóvel em punho, desmedem indecifráveis olhos que nos trespassam e sem nos tocar, muito contam da
não-vida que os persegue e, passivos, permitimos.
Em Ravena, vi as moças sentadas pelos bancos da
noite à conversa, mãos passeando inconsciente garridice sobre os cabelos; estavam rindo, os incisivos mordendo segredos de cacarácá, frescas e inermes na sua candura teen. Olhei as filas nas paragens de autocarro e absorvi o ar
cansado e terroso das mulheres perfiladas, traço distorcido e quase informe, mãos autónomas debruçadas de atenção
sobre sacos de plástico e cadeiras de bebé; e, no emaranhado dos seus cabelos sem gesto, pensei a vez em que se
sentaram à conversa e adolesceram desfiando secretos de nenhuma importância,
pele lisa, boca de romã, agilidade de corça; sonhadoras de mãos libertas, a mente dava-lhes o
futuro que nunca é. Eu vi um casamento de uma qualquer convicção religiosa, a
noiva a desprender eslavo pelos
franzidos do tule, um nada de convidados em dia da semana que para eles é certo
que foi domingo. E voltei a encontrar aquele móbil de brancura esvoaçante, na verdura de um jardim que beirava o mausoléu de Teodorico, o noivo em passada reticente sobre o relvado, um laço afogadiço no pescoço, corpo entretelado em rectas costuras; pensei-os passados dez anos: serão
outros. Mas, quem sabe, têm ainda a mesma alegria. Quem sabe…
Num lugar bem aprazível de Ravena procurámos –
mapeados, é certo – o Mausoléu de Teodorico. Paga a entrada, constatámos que,
apesar da localização favorável, o edifício alberga tão só um resto de
sarcófago. Também o Palazzo di Teodorico é uma ruína próxima de Sant’ Apollinare Nuovo, as pedras
que restam esboroando conversas antigas.
Vagueámos ainda a nossa moleza embevecida pela Cappella di Sant’ Andrea com planta ordenada em cruz e o único monumento de natureza ortodoxa que se iniciou sob as ordens de Teodorico. Ali repetimos o embaraço das palavras perante a maravilha dos mosaicos: sentámo-nos em respeito e silêncio de contempladores estarrecidos.
Vagueámos ainda a nossa moleza embevecida pela Cappella di Sant’ Andrea com planta ordenada em cruz e o único monumento de natureza ortodoxa que se iniciou sob as ordens de Teodorico. Ali repetimos o embaraço das palavras perante a maravilha dos mosaicos: sentámo-nos em respeito e silêncio de contempladores estarrecidos.
Numa fuga ao oriente e seu traçado de beleza viciante,
visitámos o Duomo, edifício de construção mais recente, ancorado em suas linhas simples e claras,
talvez de influência austríaca. Soube-nos bem este templo em simultâneo grácil
e sumptuoso. Em mim, o Duomo estremece em encanto primaveril e virginal que clama por um Deus-artista, pousando na cruz em leveza. Sem cravos nem
sangue, um sofrimento lamentoso e todo mental a ensombrar o rosto perfeito. Apetece consolá-lo, dar-lhe colo, ninar uma cantiga até que a fronte desenrugue, a boca desvinque e os olhos se lhe cerrem em desmaio de pétala. E, se mais não houvera, só por acordar em nós um jovem-deus que acena ao Menino Jesus de Pessoa, o Duomo merece a atenção do passante.
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