quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Cascata di Varone



Numa mundividência mapeada a rigor, desatámos a subir, curva atrás de curva, em busca da cascata. O ar afilava o perfil e a paisagem crescia vertical, cumes em desafio. E nós contritos do pecado de olhos passageiros. De súbito, a placa de Varone. E logo a da cascata. Ali nos apeámos, eu em ignorância total – de cascatas conhecia o que a TV mostra do Brasil –, curiosidade acesa, ia presenciá-la in the flesh. Como de hábito, nada de concreto e antecipado. A alma, que às vezes se me arrasta de muletas, tem destas adolescências, gosta da surpresa. Prefere esse olhar virgem, brancura de nada ser que risca mais fundo. Comprámos bilhete e ainda se me pendurava o estereótipo das telenovelas, um barulho manso em queda de água que arredonda num lago mais ou menos azul e transparente. Talvez o ambiente o tenha catalisado. O lugar era pródigo em flores e espécies vegetais, havia um bar e, semeadas aqui e ali, mesinhas e bancos agradáveis que aproveitámos  para nos dessedentar. Rodeado de montanhas, aquele jardim trepador era um pleno de paz. Quem sabe, estarei apenas  a desculpar a imposição do imaginário que tanto me inibe a realidade, facto que, note-se, não entendo de má reputação.  Entrámos e desvaneci com as orquídeas a receber-nos, as ruas em mantos florais ladeados de árvores e arbustos exóticos. E, de encanto em encanto, caminhámos para a cascata. Que, em mim, continuava sendo aquelazinha mesma das novelas. Nada, mas mesmo nada, me fazia supor que a água se despenhava das alturas por uma fenda natural que esventra a rocha. Estranhei aquela subida a pé, um degrau após outro.  Perguntei. E o Luís, vamos até à nascente. Bom. Continuei subindo já sem grandes alardes de imaginação para uma nascente de cascata sem referente, que as novelas desgostam de nascentes. No primeiro estádio da subida, munido de gradeamento,  parei a admirar e, por imitação, fotografei; a água, iluminada e colorida resultava bonita, mas em nada se parecia consigo. E fotografias onde tudo parece outra coisa não me movem. Havia gente debruçada aqui e ali, admirando aos cliques a água que escorria a receber-nos já com algum ruído de queda e ressuscitando-nos por inteiro num banho benfazejo, pulverização de gotas meio difusas, que desvaneciam  em espectáculo de holofote colorido. E em nós um agrado de olhos que é refrigério, a pele aplaudindo, farta de sufocos e excessos de suor, isto sim, é viver. E depois, o lugar da cascata é lindo. Inclui o jardim botânico que todo se estende em languidez luxuriante de cheiros e cores, e música ambiente – o ímpeto de Wagner na cavalgada das Valquírias faz pendant em sonoros de queda de água.
 Farta dos meus assomos fotográficos, avanço para o segundo nível. À medida que a escalada me aproxima da nascente, noto que a natureza acelera e transfigura: o que era chuvinha e aspersão de gotas frescas torna-se tempestade raivosa, um ruído ensurdecedor de água a despenhar a toda a brida, em ímpeto de terrífica demolição. Estaco em cataclismo, a água a encharcar-me de viés, mero ricochete da pedra. Enfim, decido-me, agarro o comprimento da saia que pendura chuva e resolvo correr um corredor sob a tormenta, até ao próximo gradeamento. Sentindo-me no olho do trovão, atravesso dois ou três metros de uma tempestade cinematográfica, mas real. Lá no alto, a iluminar-nos, o olho de dragão espreita na fenda por onde a água enraiva, zangada de morte. Olho para cima aterrada e, sobre o ribombar aquoso, decido num grito de alarme, para a figura do Luís que mal diviso, Luís eu já não avanço mais; tu e a Céu podem subir, eu espero aqui. E o Luís ainda a correr no temporal, nikon a tiracolo, óculos pejados de gotas a escorrer, achega-se a olhar-me meio divertido, já não podes ir mais, ninguém pode, olha ali. Só então reparei que estava no último miradouro, com um número minguadíssimo de pessoas (dois homens, ele incluído). Restava-nos voltar sobre os passos.

Que nome tem a decisão que ocorre desnecessária?!  

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