terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Em tudo há golpes de sorte e azar. O nosso ventinho benfazejo aconteceu em Ravena que, à nossa revelia, é, no ano da graça de dois mil e quinze, capital italiana da cultura. E que, para além de uma programação cultural que se estende para o futuro (seis anos), anunciava de junho a setembro, ininterruptos e nocturnos eventos culturais. A pouco assistimos na semana em que “ravenámos”, tal o estado de miserável cansaço a esmagar-nos depois do crepúsculo. Porém, por duas vezes nos arrastámos até praças repletas de atento público. E logo a performance dos artistas eclipsou cansaços do corpo e nos tomou a alma.
Mas todos os dias pode haver manhã. Ainda que nos levantemos à uma da tarde. Assim, na vez em que fomos à igreja de S. João Evangelista, cuja nem estava, nem deixava de estar no roteiro, abriu-se-nos uma claridade matinal avessa a ponteiros de relógio, teimosos nas três da tarde. A verdade é que saíramos em hora de difícil calor a colectar sombras no caminho para um gelado,  intentando em seguida o Mausoléu de Teodorico.  O bendito acaso fez-nos passar naquela rua comprida de outras vezes e alertou-nos, graça divina, para um maviosíssimo som de órgão que só a nós moveu (será que fomos os únicos a ouvi-lo?! Ó agradável ego!). Assim mesmo. Quais ratinhos de Hamelin fomos em busca da melodia. Enfeitiçados. Dobrámos esquinas, chegámos à porta da igreja e entrámos. Por mim, não sabia onde estava nem tal me importou (quase nunca sei, é um desvario). Havia alguém a tocar uma peça (estivemos quase uma hora e ficou tocando); talvez treinasse um concerto ou fosse desfastio de dedos em férias. A primeira visão que me varou foi o frade. Vestido à maneira, a acertar o castanho do burel com o cordão branco  da cinta. Devidamente encapuçado. No meio do incorpóreo recital e da beleza da igreja, quadrou. E logo me acudiram aqueles desejos saudosos de ser monja, a voz em voos gregorianos a quebrar o voto de silêncio. Bom, gosto de acreditar na reencarnação e, havendo, decerto fui monja. É que tenho saudade à condição, por muito que não pareça.
            Aproximámo-nos do órgão (só um poucochinho) e pudemos ver a organista. Sentámo-nos. Tenho certeza que no silêncio da minha alma ajoelhada houve um daqueles momentos de humildade recôndita de “não sou digna”, crescendo em escorrimentos de beatitude e espontânea gratidão. E entrámos naquele diálogo sem hora, entre a ressonância e o espírito, coisa de deleite. Habitámos o “lugar onde corre leite e mel”, que não é deste mundo, mas nele acontece. Que sobrevoa o humano mas só nas pessoas é vivido. Um gozo de alma. Portanto.
             Mas Teodorico esperava-nos no seu sarcófago vandalizado e vazio. Entretanto, para me arrancar ao torpor místico, levantei-me a passear o templo todo em volta, olhando-o devagar: a reocupar-me de cabeça tronco e membros. Foi quando reparei na estátua do santo, enorme, com um bordão de respeito e que sei chamar-se báculo. Um santo bispo. Comecei a ler-lhe a sinopse da vida e, ainda a descer da nuvem musical, consegui entender que o santo morrera na viagem para Roma onde teria sido chamado pelo papa. Um pouco mais à frente, encontrava-se o relicário com o que me pareceu um pedaço de cana todo entretecido de fios e flores em ouro. Estes italianos são assim, pensei, devia ser a cana de peregrino com que o santo morreu na última viagem para Roma. Fui observar e, na verdade, estava cortada pelos dois nós, ligeiramente mais grossa a cada ponta. Perguntei para mim em quantas igrejas haveria bocados de cana recamados a ouro. Abanei a cabeça, os italianos com a mania de guardar coisas santas, são do pior. Em Mântua até existem dois bocadinhos de terra guardados; diz-se que neles escorreu o sangue de Cristo crucificado. 

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