Em tudo há golpes de sorte e azar. O nosso
ventinho benfazejo aconteceu em Ravena que, à nossa revelia, é, no ano da graça
de dois mil e quinze, capital italiana da cultura. E que, para além de uma
programação cultural que se estende para o futuro (seis anos), anunciava de
junho a setembro, ininterruptos e nocturnos eventos culturais. A pouco
assistimos na semana em que “ravenámos”, tal o estado de miserável cansaço a
esmagar-nos depois do crepúsculo. Porém, por duas vezes nos arrastámos até
praças repletas de atento público. E logo a performance dos
artistas eclipsou cansaços do corpo e nos tomou a alma.
Mas todos os dias pode haver manhã. Ainda
que nos levantemos à uma da tarde. Assim, na vez em que fomos à igreja de S.
João Evangelista, cuja nem estava, nem deixava de estar no roteiro,
abriu-se-nos uma claridade matinal avessa a ponteiros de relógio, teimosos nas
três da tarde. A verdade é que saíramos em hora de difícil calor a colectar
sombras no caminho para um gelado, intentando em seguida o Mausoléu de Teodorico. O
bendito acaso fez-nos passar naquela rua comprida de outras vezes e
alertou-nos, graça divina, para um maviosíssimo som de órgão que só a nós moveu
(será que fomos os únicos a ouvi-lo?! Ó agradável ego!). Assim mesmo. Quais
ratinhos de Hamelin fomos em busca da melodia. Enfeitiçados. Dobrámos esquinas,
chegámos à porta da igreja e entrámos. Por mim, não sabia onde estava nem tal
me importou (quase nunca sei, é um desvario). Havia alguém a tocar uma peça
(estivemos quase uma hora e ficou tocando); talvez treinasse um concerto ou
fosse desfastio de dedos em férias. A primeira visão que me varou foi o frade.
Vestido à maneira, a acertar o castanho do burel com o cordão branco da cinta. Devidamente encapuçado. No meio do incorpóreo recital e da beleza da
igreja, quadrou. E logo me acudiram aqueles desejos saudosos de ser monja, a
voz em voos gregorianos a quebrar o voto de silêncio. Bom, gosto de acreditar
na reencarnação e, havendo, decerto fui monja. É que tenho saudade à
condição, por muito que não pareça.
Aproximámo-nos do órgão (só um
poucochinho) e pudemos ver a organista. Sentámo-nos. Tenho certeza que no
silêncio da minha alma ajoelhada houve um daqueles momentos de humildade
recôndita de “não sou digna”, crescendo em escorrimentos de beatitude e espontânea
gratidão. E entrámos naquele diálogo sem hora, entre a ressonância e o espírito,
coisa de deleite. Habitámos o “lugar onde corre leite e mel”, que não é deste
mundo, mas nele acontece. Que sobrevoa o humano mas só nas pessoas é vivido. Um
gozo de alma. Portanto.
Mas Teodorico esperava-nos no seu
sarcófago vandalizado e vazio. Entretanto, para me arrancar ao torpor místico,
levantei-me a passear o templo todo em volta, olhando-o devagar: a reocupar-me
de cabeça tronco e membros. Foi quando reparei na estátua do santo, enorme, com
um bordão de respeito e que sei chamar-se báculo. Um santo bispo. Comecei a
ler-lhe a sinopse da vida e, ainda a descer da nuvem musical, consegui entender
que o santo morrera na viagem para Roma onde teria sido chamado pelo papa. Um
pouco mais à frente, encontrava-se o relicário com o que me pareceu um pedaço
de cana todo entretecido de fios e flores em ouro. Estes italianos são assim,
pensei, devia ser a cana de peregrino com que o santo morreu na última viagem
para Roma. Fui observar e, na verdade, estava cortada pelos dois
nós, ligeiramente mais grossa a cada ponta. Perguntei para mim em quantas
igrejas haveria bocados de cana recamados a ouro. Abanei a cabeça, os italianos
com a mania de guardar coisas santas, são do pior. Em Mântua até existem dois
bocadinhos de terra guardados; diz-se que neles escorreu o sangue de
Cristo crucificado.
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