Desesperança à Beira de Ravena
A semana em Castellaro Lagusello correu célere.
Às nove do último dia ainda sofríamos o mesmo calor húmido e amolentado, a
pele a reagir desfazendo-se em gotículas. Ele impávido, florescendo em sua
indiferença natural. Pertença impenetrável da natureza, acompanhou-nos a
vigília nocturna e agudiza agora, na crescença das horas, a desmaiar-nos gestos
e despedidas. Pelo chão, empacotados e em pilha, malas, sacos, roupas e haveres
pedem atenção que os segure. E Ravena que nos espera enquanto esta casa se
desprende, a nossa saudade já futura.
Viajamos ao encontro da diferença na paisagem,
a lonjura a pique dos ciprestes dando vez a álamos e choupos. Beleza em
diástole, acalmando. Extensas planuras de terreno agrícola a sobrepor. No
enlevo de meu pai, observo macieiras e vinhas em desmaio sensual sob a
canícula, fertilidade quase pecaminosa a atingir-nos o exiguo alentejano. E é
ainda com olhos seus que invejo a morfologia do solo e a largueza de água.
Paramos algures junto a um supermercado
buscando almoço. E é então que os vejo pela primeira vez. Hão-de repetir-se,
diários, em Ravena. A princípio não lhes dei importância, somos assim,
desatendidos dos outros que não integram o nosso círculo próximo. Resolvemos
almoçar à vez, o Alberto e a Lina a apontá-los, são os africanos que chegam a
Itália num bote, não têm emprego. E vejo dois homens, um a cada ponta do lugar.
Não parecem perdidos nem encontrados. São apenas dois homens parados num parque
de estacionamento. Por acaso, os únicos dois que ali estão, imóveis como
postes, no meio do calor de que todos se abrigam e me obriga ao exterior do
veículo. Encosto-me no tronco da árvore perto do carro e observo-os. O que se
encontra mais longe como que se cansa de mim, caminha até ao outro e resolve ir
embora depois de breve conversa. Segue lento, abanando as mãos vazias; dobra
uma esquina e sai do meu raio de visão. O outro fica a olhar-me, duas bananas
dentro de um saco plástico suspenso da mão. Não pede nada, só me olha. Penso
vagamente que não tenho que dar-lhe, preciso levantar dinheiro, na minha
carteira nem uma moeda tilinta. Mas ele está quieto, sem intento de estreitar
distância. Apenas me olha. Se eu fosse ele, o que pensaria se me visse? Reflito
que o meu aspeto não é de modo algum o de pessoa abonada. Pois, não é. Mas de
certeza ele me inveja. Imagina que tenho uma casa em algum lugar e que, de
alguma forma – seja bem próprio ou de aluguel –, me pertence, é lugar meu e a
que posso voltar. Avalia que tenho direito a permanecer num país e a usufruir
de ser nele cidadã. Sabe que tenho um meio de vida que pode ser mais
ou menos seguro, mas é um meio de vida que me possibilita planos, se gasto mais
ou gasto menos, onde posso ou não posso ir. Supõe que na minha carteira há
cartões que valem dinheiro e me simplificam a vida. E o que lhe leio nos olhos
é o nada disso. Lá, nos seus olhos bem negros, mora o desalento de quem nem a
esperança pode. Não sei como é viver assim. Nenhum europeu sabe.
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