Ravena
Entramos em Ravena exaustos do dia e da insónia de calor. E que bem nos caem
cidade e casa: receptivas, calmas. Então, a materna noite aproxima-se
sorrateira e deita-nos o exacerbado cansaço na frescura do ar condicionado que,
relapso, elide qualquer resquício de castelo. Pétreos e comatosos, adormecemos ao anoitecer.
Observo o dia seguinte da varanda, em seus
passinhos de bebé que tenteia, pé ante pé, semeando claridade e ondas de calor.
Sento-me ao fresco da sala e estudo lugares de tanta história. Mais tarde,
decidimos palmilhar ruas e dar conta de alguns monumentos insuspeitos e não
assinalados no guia. Em pesponto de surpresa, batemos de nariz no túmulo de
Dante Allighieri que morreu em Ravena, acaso dele que em nós foi bom augúrio. Sem pressas, a percepção feita
lente a ajustar em precioso trabalho de focagem, visitamos o Battistero degli
Ariani, a Basilica di Sant’Apollinare Nuovo e a igreja de S. Francisco. A
imaginação não alcança quanto sortilégio mora na cor e no traço da arte
bizantina dos dois primeiros. Os mosaicos dos séculos V e VI dão às igrejas e
outros monumentos a tonalidade meio oriental que nos atrai. Por mais que digam
e contrariem, há nos europeus uma atracção pelo oriente que se agarra às
colunas corínteas, ao verde dos mosaicos, ao dourado dos fundos, ao próprio dos
rostos que emergem em arte de bizâncio, frontais, meio sérios, em calma
consciência de quem está e é para a eternidade. São santos, reis e um Deus-homem – uma
procissão de mártires bem compungidos seguindo um santo; e um cortejo de tenras virgens
de púdico olhar, atrás dos reis magos, na basílica de Santo Apolinário; no
Batistério dos Arianos, Cristo e João baptista - retratados como deuses: sem vaidade, naturalmente.
Porque sim. Séculos a fio a observar-nos galhardamente, do seu centro de
autoridade impávida: a ábside e as paredes laterais das igrejas. Há mil anos já eram
assim, sem idade. Os mesmos. Rosto virado às multidões, pedrinhas minúsculas em
mosaico de maiúscula paciência e arte, mostrando a admirável centelha de Bizâncio.
No batistério, é bom verificar que não se oculta a nudez de Cristo. Quem sabe
Bizâncio já detinha o germe da preocupação com o realismo anatómico na figura
humana tão valorizada no renascimento. Ou não existiria neles a condenação do
corpo que a igreja medieval propagava. Era um caminhar de artista, inocente sobre
todas as coisas.
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