terça-feira, 22 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália

Mausoléu de Gala Placídia

A primeira coisa que intriga neste monumento é o facto de pertencer a uma mulher. Em Ravena, não encontrámos outro de igual condição (nem noutro lugar, diga-se). Para mais, os historiadores garantem que os restos mortais  da senhora não se detêm por ali. Mas, e ainda que com dimensão bem menor que San Vitale (fica-lhe nas traseiras), a beleza dos mosaicos que o forram é idêntica; há mesmo uns bocadinhos de céu azul abobadado e com astros, a confundir-nos as meninges. Morde-nos a curiosidade, que mulher é esta, erguida assim da profundeza dos séculos.  Que, no século IV, do feminismo não havia nem sombra de conceito. E as mulheres, como toda a gente adivinha, se tinham função política era por interposta pessoa. Não foi bem o caso. Repare-se só na fulgurância deste nome: Gala Placídia. Atendamos ao primeiro e logo, talvez eivados de preconceito capoeirento, determinamos que a dama tinha aspirações de chefia, mando. Em suma, presume-se que queria saber das coisas e orientá-las a contento. Não invento: galar alguém significa não apenas a textualidade que também significa, mas sobretudo estar a observá-lo, dominá-lo pelo saber do que nele se passa, como que um estar acordado para a possível malícia do outro. Por outras palavras, ser-lhe superior. Bom. Chegada a este istmo, fiquei curiosa e fui observar o rosto de Gala Placídia – no mausoléu desfigurou-se-me e não a encontrei, perdida que me fiz no azul abobadado e outras belezas a rigor. A net oferece-me a dama de colarzinho e verifico que rima, tal qual, com o nome. Não esqueçamos que tem dois, tão claros e distintos como as ideias cartesianas. Olá se são. Gala é esse ser cerebral e superior que lhe mora dentro. Porque Placídia é o seu lado de colarzinho, feminino, terno, sedutor (ai Deus me livre de errar que nada sei da terminologia romana e estarei inventando se outra coisa não for). Placídia não era uma formosa  Dalila (e não me digam que Dalila não é um nome estoira-vergas, que é), era uma mulher de sua casa e seus amores de extraordinária fundura. E a reunião das duas numa só pessoa não tem natureza divina – a tê-la, exigia-se o três em um – mas, pelo visto, foi claustrofobicamente apaixonante. Isso mesmo.  Paixão claustrofóbica era o que a D. Gala provocava nos corações e talvez também lhe fosse dado viver (não acredito muito). Se fora de outro modo, como explicar que tal pessoa fosse raptada e casasse com o raptor (ou quase ele), um rei ostrogodo que se converte e casa com ela seguindo preceitos cristãos, vestido de romano…bom, pode ser jogo político do rei sonhador de unficações, mas há ali muita Gala derramada. Para além disso, parece que Gala casou com ele por amor e foi feliz; o certo é que, entre os bárbaros, fez amizades para a vida e as manteve na sua guarda pessoal até ao fim. Tinham que ser fidelidades caninas, admiração e respeito dos antigos, género, sendo necessário, morro para que vivas. Ora, meus amigos, este tipo de ligação não nasce dentro de uma bolsa de patacas, antes irradia de uma personalidade envolvente e vamos lá, talvez um pouco tirânica; o amor é assim, de tiranias concêntricas. Por que refiro estes acontecimentos? Bom, porque ser muito amada por seus maridos – teve dois, um bárbaro e um romano – é peculiaridade natural, mas ser servida na corte romana por servos vindos da barbárie e só neles confiar, é deveras notável.
Quem me leia pensará, e depois, era uma mulher educada, filha de um imperador, irmã de outro, mulher de outro e mãe de mais um. Pois. Mas não só. Quanto se lutou por Gala! O irmão – que era só meio irmão e imperador – conta-se que tinha paixão pela irmã (então, que é isso, as paixões não são só o comum rasga-a-roupa) e ela o aconselhou em bastas decisões. Quando Gala foi raptada, o mano moveu os seus homens para a libertação. E um dos seus generais, que parece sempre a amou (não sabemos desde quando, mas o amor é assim uma coisa meia parva que bate sem mais nem mas; portanto, vou assentar que era desde que ele a viu jovenzinha sábia e nada de se deitar fora), depois de se bater valentemente com suas tropas e conseguir trazê-la para o mano imperador (o primeiro marido, o rei ostrogodo, já tinha morrido), pediu-a em casamento. Donde resultaram dois filhos, uma rapariga bastante parecida a Gala e um rapaz. Quando o irmão de Gala morre, o marido sucede-lhe e ela devém, pelo casamento, imperatriz. Por morte do segundo marido (aí, mulher valente), Gala rege o império; o filho tinha, então, seis anos.
Muito haverá a dizer sobre a personalidade política desta senhora. Mas a única coisa que me intriga, vejam só, é ter lido que mandou matar o casal a quem a sua educação foi confiada.

Repousa em paz, intrigante Gala Placídia.

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