Basilica di San Vitale
No segundo dia a beber ares de
Ravena, o meu espanto artístico chegou ao cume e por lá permaneceu em
desorientação apalermada, que os caminhos da perfeição são uma espécie de murro
na mente que atordoa o mais sensato. Bêbados de beleza, deviemos contemplativos
originários na cirandância alentejana por Ravena e suas igrejas e batistérios.
E, se não fora o calor a apoquentar-nos, pelo menos eu cuidaria que viajara no
tempo e circundava – ou entrava mesmo – nos palácios das mil e uma noites. Bom,
é verdade, sou empurrada por um olhar e uma mente adúlteros de nascença: se vejo
lagos, lembram-me sonhos; se nas igrejas abundam pinturas, julgo-me num museu;
se olho um túnel na rocha, estou num convento infindável. E o mais que não merece
palavra.
Portanto,
a riqueza analítica e o abundante colorido dos mosaicos, os pormenores de rico
embelezamento nas colunas e capitéis, os minúsculos mosaicos dourados que
iluminam as figuras e o pormenor com que elas foram reproduzidas, subtraem-nos
ao quotidiano, são elevador repentino a projectar-nos a outra dimensão.
Talvez
Mircea Iliade esteja certo e nos aconteça a irrupção de um sagrado emergente
por afirmação de beleza superior. Porém, ninguém pensa nEle ao observar o
interior da Basilica di San Vitale. Mas são exclamativos os olhos que a
contemplam. Escandidos. Arrisco mesmo que perjuros. Mais que à magnificência da
cor e à profusão das representações – o horror ao vazio ainda era uma realidade
-, fui sensível à traça: às linhas curvas, aos
arcos que ligam as colunas e ao rendado das mesmas, às arcadas de janela no
piso superior e ao octógono em que se dispõe o templo e o distribui em exotismo. Perpassa em San Vitale
uma graça de palácio árabe e tem a leveza de construção aberta que nos faz esperar o
perfil de uma princesa de véu esvoaçante sob as arcadas. E por mais que o
Cristo se pareça com um jovem grego de alto lá, cheio de viço mesmo – nada daqueles
cristos loiros com olhos de amor queixoso, que antevêem o que os espera; este é
quase luxuriante; de íntimo impenetrável, suprema de todas as figuras em sua
sequência ordenada, está para a eternidade –, ou também movidos por esse ser divino
fugido ao conceito, esquecemos os rituais que o templo serve e serviu. Inermes
contempladores. Apenas.
Ali
revimos as fotos do livro de história, Justiniano e Teodora, cada um com seu
séquito. Não recordo o ano em que os estudei nem o que deles aprendi, mas encontrei-lhes
no rosto o mesmo ar raro que outrora me confundiu. Revi minha mãe a fazer-me torradas e gemada
nas madrugadas que eram só nossas; eu a estudar história no meio do fumo da
lareira, olhos a arder lendo, “o imperador foi coroado em Ravena”, legenda de
uma foto onde se via uma igreja e um imperador de longo manto que me apressei a
mostrar-lhe; não imagino que imperador seria, mas a “foto” era apenas uma pintura. Nessa manhã, do fundo dos meus treze ou catorze anos,
determinei que Ravena era o nome da igreja onde estaria a coroa e que o
imperador foi lá buscá-la com pompa e circunstância. E pronto. Longe de supor que
um dia eu mesma descobria Ravena. Cidade. Sem coroa, é certo, mas não menos encantatória.
E quedámo-nos a babar silêncios nos mais lindos e antigos azulejos da
tradição bizantina, antes de rumarmos ao mausoléu de Gala Placídia (oh
extraordinário nome de mulher!). Abençoada seja Ravena.
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