quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Um Agosto em Itália


Basilica di San Vitale

                No segundo dia a beber ares de Ravena, o meu espanto artístico chegou ao cume e por lá permaneceu em desorientação apalermada, que os caminhos da perfeição são uma espécie de murro na mente que atordoa o mais sensato. Bêbados de beleza, deviemos contemplativos originários na cirandância alentejana por Ravena e suas igrejas e batistérios. E, se não fora o calor a apoquentar-nos, pelo menos eu cuidaria que viajara no tempo e circundava – ou entrava mesmo – nos palácios das mil e uma noites. Bom, é verdade, sou empurrada por um olhar e uma mente adúlteros de nascença: se vejo lagos, lembram-me sonhos; se nas igrejas abundam pinturas, julgo-me num museu; se olho um túnel na rocha, estou num convento infindável. E o mais que não merece palavra.
Portanto, a riqueza analítica e o abundante colorido dos mosaicos, os pormenores de rico embelezamento nas colunas e capitéis, os minúsculos mosaicos dourados que iluminam as figuras e o pormenor com que elas foram reproduzidas, subtraem-nos ao quotidiano, são elevador repentino a projectar-nos  a outra dimensão.
Talvez Mircea Iliade esteja certo e nos aconteça a irrupção de um sagrado emergente por afirmação de beleza superior. Porém, ninguém pensa nEle ao observar o interior da Basilica di San Vitale. Mas são exclamativos os olhos que a contemplam. Escandidos. Arrisco mesmo que perjuros. Mais que à magnificência da cor e à profusão das representações – o horror ao vazio ainda era uma realidade -, fui sensível à traça: às linhas curvas, aos arcos que ligam as colunas e ao rendado das mesmas, às arcadas de janela no piso superior e ao octógono em que se dispõe o templo e o distribui em exotismo. Perpassa em San Vitale uma graça de palácio árabe e tem a leveza de construção aberta que nos faz esperar o perfil de uma princesa de véu esvoaçante sob as arcadas. E por mais que o Cristo se pareça com um jovem grego de alto lá, cheio de viço mesmo – nada daqueles cristos loiros com olhos de amor queixoso, que antevêem o que os espera; este é quase luxuriante; de íntimo impenetrável, suprema de todas as figuras em sua sequência ordenada, está para a eternidade –, ou também movidos por esse ser divino fugido ao conceito, esquecemos os rituais que o templo serve e serviu. Inermes contempladores. Apenas.
Ali revimos as fotos do livro de história, Justiniano e Teodora, cada um com seu séquito. Não recordo o ano em que os estudei nem o que deles aprendi, mas encontrei-lhes no rosto o mesmo ar raro que outrora me confundiu. Revi minha mãe a fazer-me torradas e gemada nas madrugadas que eram só nossas; eu a estudar história no meio do fumo da lareira, olhos a arder lendo, “o imperador foi coroado em Ravena”, legenda de uma foto onde se via uma igreja e um imperador de longo manto que me apressei a mostrar-lhe; não imagino que imperador seria, mas a “foto” era apenas uma pintura. Nessa manhã, do fundo dos meus treze ou catorze anos, determinei que Ravena era o nome da igreja onde estaria a coroa e que o imperador foi lá buscá-la com pompa e circunstância. E pronto. Longe de supor que um dia eu mesma descobria Ravena. Cidade. Sem coroa, é certo, mas não menos encantatória.

E quedámo-nos a babar silêncios nos mais lindos e antigos azulejos da tradição bizantina, antes de rumarmos ao mausoléu de Gala Placídia (oh extraordinário nome de mulher!). Abençoada seja Ravena.

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