Durante
a marcha para Sirmione, cruzámos um ror de gente, em grande parte estrangeira.
Parece que o Garda atrai bastante público alemão e austríaco, mas também os
chamados “povos de leste”. Famílias inteiras, três gerações a passeio;
carrinhos de bebé empurrados a quatro mãos, que os pais não fazem por menos,
agarram os rebentos e levam-nos consigo; garotas
capa-de-revista, em calções, biquíni, vestido ou saia, o moreno dourado das
loiras em rédea solta, um fluido de polpa de pêssego a desprender-se-lhes do
airoso; mulheres maduras em rancho ou a par, chalreando conversas, enganos de
voz na solidão que tanto pesa. Homens sozinhos com aquela pose que eles julgam
ser de engate e lembra cão sem dono, mesmo se dândis sem rasura. Velhotas de
passo curto e olhinhos pequenos, encovados, luzindo amor ao mundo, uma
reticência de raíz ao términus que se avista. E muitos destes em bicicleta, a
pedalar suor, uma força de mágoas a estraçalhar na cremalheira dentada da roda
pedaleira.
Sirmione
é Itália turística: antiga e bucólica, a efervescer de gente. Aninha-se junto
a um castelo de pés na água, em ruas estreitas de muita flor, bicicletas da minha
inveja em airoso descanso ou movimento, alforges e cestos a completar-lhes o
perfil. E as lojas em proliferação, vendendo, vendendo. Cativou-me uma em tons
lavanda que fazia venda do produto, delicadeza de cor que atraía como um conto
de fadas e princesas. Mas entrou-lhe uma gorda abelhuda e esvaneceu a ilusão.
Na volta, depois do castelo e das ruelas, da
água a entardecer, repetiu-se a multidão, os automóveis, as bicicletas. Mar de
gente que mexia, que passeava quem sabe se distraída, com o fito de ir
para outro lugar. Não sei que ansia nos leva de um lado a outro, querendo estar
onde não estamos e presentifica a estupefacção de Sá Carneiro reconhecendo-se
“eu não sou eu nem sou o outro…”. E eu não queria estar em lugar nenhum senão
ali. No entanto, também sonhava outra coisa. Aspirava às pessoas normais
com sacos de plástico, às vizinhas que decerto existem, aos garotos em bandos
que não havia. E talvez também eu tenha perdido a Sirmione que existe. E
respira. E é.
No
emaranhado humano dos dois ou três quilómetros de caminho, comoveu-me observar
um pai com o filho, bicicleta à mão. Quatro ou cinco anos magrinhos, ao modo
do garoto de “Cinema Paraíso”: calções de suspensórios e o mesmo rosto
perguntador, cabelo curtinho a emoldurar. Caminhavam lado a lado, a mãozinha
perdida na do progenitor, em abandono confiado; não entendi a conversa, mas, de
entusiasmo, o filho saltava de quando em vez para a frente do pai impedindo a
marcha, numa algaraviada que só puxadela de mão levava ao lugar, a voz do pai
um veludo em fundo de autoridade. Quando os ultrapassei, discutiam o veículo e
olhavam a roda da frente, um orgulho opinativo no ponteiro do garoto. E esta
harmonia me pareceu mais bonita que o castelo de Sirmione a preparar-se para a noite, bebendo oblíquos de sol, gigantes de sombra a penumbrarem o espaço por que porfiara
quilómetro atrás de quilómetro. Assistir ao futuro a fazer-se é uma dádiva e
uma esperança a que os homens sempre se rendem. Ainda que o passado os chame em
sua dinâmica estática.
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